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Foto do escritorLúcio Braga

Tempo e processo

Atualizado: 22 de fev. de 2023

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Certa vez, enquanto caminhava pelos corredores da faculdade de direito, fui abordado por um aluno que me questionou sobre a possibilidade de orientação para o seu trabalho de conclusão de curso. Ele propôs como ideia central “O tempo no processo civil”, o que foi imediatamente aceito.


Por uma dessas mazelas acadêmicas, o aluno preferiu substituir o tema por outro mais corriqueiro e com fontes mais evidentes. Uma pena, realmente. Porém, apesar da desistência, não esqueci o assunto e desde então passei a observar o tempo e a forma com que ele se relacionava com a ciência que, há quase década e meia decidi pesquisar e trabalhar.


Sempre que podia, em audiência, aulas, cerimônias e até em confraternizações, tentava introduzir discretamente o tema em rodas de conversa, ora de forma mais legalista, ora de forma mais filosófica. O presente artigo, portanto, é compartilhamento de brevíssimas reflexões decorrentes dessas trocas que compõem a minha percepção ainda em construção.


O tempo rege o ato.

Inicialmente, antes de introduzir a pergunta “qual a influência do tempo no processo?” em alguma conversa, imaginava que a primeira resposta seria as questões relativas ao prazo. Para minha surpresa, no entanto, a maioria dos questionados respondia citando a expressão latina Tempus regit actum.


O brocado se insere no estudo da aplicação da lei no tempo, especificamente fundando a regra geral de irretroatividade da norma, insculpida no art. 5º, XXXVI da Magna Carta (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”). Estes três institutos estão intimamente ligados ao tempo, precisamente buscando preservar a legalidade, a segurança jurídica, e a subsunção da época em que o direito foi constituído, declarado ou reconhecido.


Blinda-se, assim, que as mudanças legais ou de entendimento possam, em regra, retroagir para trazer para o seu campo de aplicação as decisões jurisdicionais tomadas conforme as normas vigentes e entendimentos cabíveis na época, no caso da coisa julgada, por exemplo. Ainda mais evidente é a preservação do benefício legalmente reconhecido, ainda que posteriormente revogado, como no caso do direito adquirido.


O tempo, nesse caso, é o recorte histórico social e humano em que um direito se constituiu, por lei, ato ou decisão judicial. Obra realmente interessante sobre o tema é “O tempo do Direito”, do belga François Ost. Ao escrever sobre “o direito como revelador do tempo”, ele afirmou: “As forças instituintes (tempo) se moldarão as formas instituídas (direito) e estas formas instituídas com o desenvolvimento social (com o passar do tempo) pedirão para ser substituídas por novos modelos instituintes”.


Prazos.

O prazo processual é o tempo compreendido entre o marco inicial (dies a quo) e o marco final (dies ad quem) para que o interessado ou um sujeito pratique ato. O prazo é quase sempre condição de admissibilidade fatal para a validade ou existência do ato a ser praticado.


Aventurando-me pela arqueologia jurídica, para os que eram atuantes na vigência do Código de Processo Civil de 1973, a simples mudança na contagem dos dias corridos para dias úteis materializou verdadeira transformação na vida profissional e pessoal, notadamente dos advogados. Recordo as acaloradas discussões sobre a celeridade processual que seria altamente prejudicada com a alteração, o que se provou equivocado.


Por sinal, atualmente, essa nova regra faz com que muitos profissionais do direito classifiquem os dias do ano quase que exclusivamente entre úteis e feriados. Vale lembrar que o art. 216 do CPC considera feriado “além dos declarados em lei”, “os sábados, os domingos e os dias em que não haja expediente forense”, o que pode sofrer variações a depender de datas estaduais e municipais.


Fato processual, aliás, de suma importância porque pode trazer dúvidas práticas, tais como: o feriado deve ser comprovado nos autos para demonstrar a tempestividade? Se ele deve ser comprovado, como essa demonstração é admitida, especialmente pelos Tribunais Superiores?


Tenha-se o STJ e o recurso especial como referência. O Tribunal da Cidadania tem firme jurisprudência no sentido de que os feriados locais ou suspensão do expediente forense devem ser comprovados com documentos idôneos, não servindo cópia do calendário do Judiciário ou notícia extraída da internet e sendo inaceitável a correção posterior do vício[1].


Os recursos especiais interpostos em Rio Branco/AC, por exemplo, devem demonstrar o feriado estadual ocorrido no último dia 23/01/2023 (alusivo ao dia do evangélico), caso queiram usar a integralidade do prazo recursal. Outros feriados que merecem menção por esta especialidade são a quinta e sexta-feira de Corpus Christi[2], uma vez que em alguns estados é feriado e em outros não, exigindo-se a tal prova idônea sempre que influir na tempestividade. Caso não haja a demonstração adequada, a jurisprudência será aplicada e o recurso especial inadmitido.


Os exemplos acima são pequenas, mas marcantes, demonstrações da influência do tempo no processo e no trabalho diário no mundo jurídico. O tempo enquanto gerador de angústia, em muitos casos, pelo rigor da obediência que submete o profissional a desdobrar-se para realizar o ato processual.


Quem nunca virou noites escrevendo exordiais, contestações ou recursos que atire a primeira pedra.


Prescrição e decadência

Outros dois institutos que revelam íntima relação entre tempo e processo são a prescrição e a decadência. A perda do direito ou da busca pela tutela de direito pelo decurso do tempo é claro reconhecimento deste, o tempo, como instrumento da constatação da imutabilidade de uma situação consolidada.


É o tempo que justifica a prescrição intercorrente executiva, pois o devedor não pode permanecer executado indefinidamente se não tem bens a penhorar. Pensar em sentido contrário afrontaria o princípio da responsabilidade patrimonial, pois a tutela executiva serviria como condenação pessoal à dívida eterna, o que não se harmoniza com a defesa da dignidade da pessoa humana.


Interessante observar que é justamente o efeito do tempo na constituição da prescrição e da decadência que gera a natureza sui generis desses institutos. Observados atentamente, podemos dizer que eles não são institutos integralmente processuais, nem de direito material. Tanto isso é verdade que não são elencados no art. 337 do CPC, e, embora estejam na lista do art. 487 do mesmo Codex, o seu reconhecimento esvazia o exame do direito material.


Na verdade, são consideradas questões prejudiciais do mérito, devendo ser tratadas em tópico anterior às questões preliminares. Isso, por sinal, é lógico. Pense bem, se o tempo fulminou a possibilidade de reivindicação de um direito ou o direito em si, não há sentido em discutir a inépcia da petição inicial ou mesmo a procedência do pedido merital.


“O tempo do processo”.

Reservo o último tópico para o aspecto mais sutil e complexo, a meu ver. Recorrendo às primeiras lembranças da faculdade, ainda nas aulas de introdução do estudo do direito, a frase literal que ouvi de um professor em tom de conselho foi: “há de se respeitar o tempo do processo”.


O raciocínio inicial sobre a expressão era conectá-la ao tempo de duração do trâmite processual, a “razoável duração do processo”, na exata dicção do art. 5º, LXXVIII da nossa Constituição. Assim, o tempo do processo era, para mim, objetivamente aquele compreendido entre o início e o fim da demanda e que a todo custo deveria ser reduzido para a proteção da garantia constitucional.


Com todas as vênias àquele jovem profissional em início de carreira, bastou alguma experiência para entender que “o tempo do processo” tinha conceito complexo e, principalmente, subjetivo. Gradativamente comecei a perceber que durante o trâmite processual, a lide e as partes mudavam, trazendo novos cenários, comportamentos e atitudes.


Por vezes, o tempo do processo é o tempo da reflexão, o tempo da desintoxicação dos sentimentos e impressões. Outras vezes, é o tempo do autoconvencimento e da resignação. Infelizmente, em outras situações, é o tempo que traz a angústia pela espera da prestação jurisdicional, a pior faceta da violação da garantia da duração razoável do processo.


Na sua duração normal, com as alterações naturais das condições que haviam no início da demanda, as partes podem reexaminar a situação conflituosa e cooperar para a melhor decisão. Tenha-se como exemplo uma ação de separação com todos os ingredientes de um conflito complexo (alimentos, guarda, pensões, bens etc.). É sabido que os ânimos na fase inicial do processo geralmente estão inflamados pelos acontecimentos próprios desse conflito.


Mas, uma vez estabelecida a nova realidade familiar, abre-se a oportunidade do arrefecimento da pressão e dos ânimos. Com isso muitas questões que poluem o adequado exame do mérito, dificultando a prestação jurisdicional podem desaparecer, atraindo o cabimento de outra expressão dos tribunais que sempre me chamou a atenção: “a causa está madura para julgamento”.


Quiçá o tempo do processo seja, nesse aspecto, o tempo de maturação da lide. O tempo para que as forças processuais demonstrem durabilidade e as partes possam, de maneira cooperativa, propiciar a melhor decisão. O tempo para que o juiz conheça das questões de fato e de direito suficientemente para devolver a prestação jurisdicional que atinja o seu objetivo de pacificação social.

Conclusão.

O objetivo era instigar o leitor a pensar e perceber a atuação dessa grandeza física e filosófica na resolução dos conflitos, especialmente aqueles levados ao Poder Judiciário. Não era o intuito analisar exaustivamente a influência da variável tempo em todos os aspectos processuais.


Contudo, pela pequena amostra discorrida aqui torna-se impossível negar a profunda interferência do tempo nos conflitos humanos. Além do mais, a observação dos efeitos do tempo convida ao pensamento e reflexão, que são ferramentas para a nossa evolução individual e como sociedade.

[1] STJ, T3. Agravo Interno do AREsp 1848797/SP. Relator Ministro Marco Aurélio Belizze. Publicado no DJe de 24/03/2022. [2] STJ, T2. Agravo Interno do AREsp 1923185/SP. Relator Ministro Herman Beijamin. Publicado no DJe de 17/12/2021.


Lúcio de Almeida Braga Júnior. Advogado e professor especializado em processo civil e resolução adequada de conflitos. Diretor de cursos e eventos da Capital Jurídico. Pós-graduado em processo civil e em direito econômico internacional.


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1 Comment


Éverton Tapia de Oliveira
Éverton Tapia de Oliveira
Oct 10, 2023

Parabéns! Ótimo artigo. Também me interesso muito pelo tema, especialmente pelas consequências que podem ser extraídas da diferenciação entre tempo cronológico e tempo lógico no processo. Me refiro especialmente a casos em que se verifica a presença de um vício de existência processual (uma falta de citação por exemplo) onde o tempo cronológico passa a não ter relevância, pois, a qualquer tempo pode haver a declaração de inexistência da sentença (que não faz coisa julgada) e do processo (de regra via querela nullitatis insanabilis). Nessa hipótese, o processo deve retomar o seu curso a contar do ato imediatamente anterior ao ato declarado inexistente (dentro do encadeamento lógico do processo), independentemente do tempo cronológico que tenha se passado. Nessa hipótese arrisco…

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