No dia 17 de janeiro de 2021, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou os pedidos de uso emergencial no Brasil das vacinas CoronaVac e AstraZeneca, ambas utilizadas como imunizantes contra o coronavírus. De forma geral, a notícia foi recebida com satisfação, trazendo esperança no combate à pandemia. Há, contudo, aqueles que demonstram ceticismo em relação à vacinação, quer pela ausência de confiabilidade nos métodos científicos, quer pela recusa em se submeter à vacina por convicção pessoal.
Quanto à eventual descrença na eficácia dos imunizantes, entendo que o enfretamento da questão perpassa pela seara do conhecimento médico/farmacêutico, não sendo tarefa do operador do Direito questionar a eficácia da vacinação. Há, pois, presunção de que critérios técnicos, dotados de rigor científico, tenham sido observados quando da aprovação da Anvisa. Assim, eventuais argumentos contrários quanto à eficácia do imunizante não passam de suposições, devidamente refutadas pelos resultados dos testes clínicos apresentados.
Noutro giro, a recusa pessoal em se submeter à vacinação atrai a necessidade de um debate jurídico. Trata-se de discussão atual, mas não inédita no cenário brasileiro. Importante recordar que, em novembro de 1904, a população do Rio de Janeiro foi às ruas para enfrentar a polícia e os agentes da saúde pública, num ato de manifestação contrário à vacinação obrigatória para prevenção da varíola, episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina.
Todavia, os contextos jurídico, político e social que culminaram com a Revolta da Vacina distinguem-se dos vivenciados na atual pandemia. À época, havia grande inquietude da população com a forma pela qual o governo atuava na área da saúde pública: muitas vezes os agentes estatais lançavam mão de ações truculentas, através da invasão de casas e ordem para saída de moradores para que se procedesse a desinfecção. Interdições e demolições de imóveis, bem como internações forçadas também compunham o rol de medidas de combate à disseminação de doenças. A oposição política pretendia canalizar a insatisfação popular para tentar derrubar o então Presidente da República, Rodrigues Alves, trazendo conotação política ao movimento.
Atualmente, há um novo contexto jurídico a ser considerado. A vacinação deve ser analisada à luz dos preceitos trazidos pela Constituição de 1988. O Estado Democrático de Direito adotado no art. 1° do texto constitucional, que em sentido amplo transcende o caráter político da democracia, denota a necessidade de que os direitos fundamentais tenham prevalência aplicativa no ordenamento jurídico, assumindo o núcleo do constitucionalismo garantístico. Nesse paradigma, a tutela da liberdade assume relevante expoente na proteção do indivíduo em face de eventual ingerência estatal, assegurando a autonomia individual em face da autoridade do Estado.
Por conseguinte, em razão da liberdade individual, tem se consolidado o entendimento de que ninguém é obrigado a submeter-se a tratamento médico contra a sua vontade. Trata-se da chamada recusa terapêutica, abarcada pelo direito fundamental de escusa de consciência (art. 5° VIII CF). Dessa forma, por convicções pessoais (religiosas, morais, filosóficas etc.) entende-se ser lícito ao paciente recusar a terapia que lhe é ofertada, desde que esteja em gozo de sua capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; manifeste sua vontade de forma livre, consciente e informada; bem como exige-se que a oposição diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante. (enunciado 403, V jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal). Esse entendimento é reforçado pelo art. 15 do Código Civil, que preconiza que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Não obstante, tratando-se de vacinação, a questão ganha contornos que transcendem a órbita de disponibilidade individual, dado que o caráter coletivo da vacinação abarca normas de saúde pública, às quais devem prevalecer sobre a liberdade de consciência e de convicção filosófica. Ou seja, a liberdade de recusa terapêutica não deve se aplicar à vacinação, haja vista a necessidade de imunização comunitária como condição para combate à pandemia.
A questão foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, que ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879, entendeu pela possibilidade de vacinação compulsória contra a Covid-19, prevista na Lei 13.979/2020. No entendimento do STF, é lícito ao Estado impor medidas restritivas aos cidadãos que se recusem à vacinação (exemplo: multa, privação de direitos), não podendo, contudo, realizar a imunização à força.
No julgamento do ARE 1267879, fixou-se a seguinte tese de repercussão geral: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.
Já nas ações diretas 6586 e 6587, a tese fixada pelo STF foi a seguinte: “(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente. (II) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência”.
Sob o aspecto formal, o princípio da legalidade foi observado, pois a Lei n° 13.979/2020 permite que, para combater a propagação do coronavírus, as autoridades adotem diversas medidas de caráter preventivo e sanitário, dentro às quais é elencada a vacinação compulsória (Art. 3°, III, d).
Num prisma material, em consonância com a jurisprudência do Supremo acima evidenciada, entendo que, em que pese a regra seja a possibilidade de gozo e exercício dos direitos fundamentais (aqui incluída a liberdade de recusa terapêutica), em tempos de pandemia, o interesse público conclama a adoção de medidas que superam a liberdade individual. Embora centrais no ordenamento, os direitos fundamentais não têm caráter absoluto, podendo ser relativizados à luz de outros direitos igualmente fundamentais. Dessa forma, a restrição à liberdade individual de não se submeter à vacinação justifica-se dentro do contexto de interesse social e saúde pública.
Recorde-se que, com a pandemia, diversos direitos sofreram restrições em prol da coletividade (livre iniciativa comercial, liberdade de locomoção, liberdade de reunião, religiosa, dentre outros). Tal fato evidencia que o combate ao vírus requer esforço comunitário, pois a pandemia tem o condão de atingir invariavelmente toda a população. Assim, a liberdade individual não deve estar acima de outros direitos fundamentais, sendo válida a medida de vacinação compulsória disposta em lei e de constitucionalidade reconhecida pelo STF. Reitere-se que a vacinação se apresenta como única medida médico/farmacêutica cientificamente comprovada no combate à pandemia. Necessário se faz, portanto, relegar a Revolta da Vacina aos livros de história, devendo a vacinação contra o coronavírus ser efetuada em sua máxima amplitude.
Pedro Macedo é procurador do Estado do Acre. Professor do curso de Direito do Centro Universitário U:verse. Mestre em Direito. Doutorando em Ciência Jurídica.
e-mail: pedroafranca@yahoo.com.br
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