A Lei nº. 8.906/94 – Estatuto da Advocacia, em seu art. 58, XI, determina que compete privativamente aos Conselhos Seccionais, definir os critérios para os trajes dos advogados. O assunto já foi debatido e gerou um procedimento de controle administrativo no Conselho Nacional de Justiça – CNJ[1], protocolado pela Seccional do Rio de Janeiro em 2011, com a seguinte questão: Os advogados podem ser obrigados a usar terno para falar com os magistrados? A polêmica foi gerada em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, quando uma juíza se negou a receber um advogado, diante da ausência do paletó, alegando “ofensa ao judiciário”.
A conduta da magistrada pode ser atribuída, dentre outros, ao que está disposto no Regimento Interno da 5ª vara do Trabalho de Duque de Caxias, norma elaborada em consonância com a autonomia conferida pelo art. 99 da Constituição Federal ao Poder Judiciário, mas que, por outro lado, estaria em conflito com a Resolução nº. 233/2011, da OAB/RJ, que faculta o uso ou não de paletó e gravata no exercício profissional.
A exemplo da Seccional do Rio de Janeiro, a Seccional do Rio Grande do Norte[2] passou a dispor sobre a vestimenta de advogados e advogadas em razão das elevadas temperaturas do Nordeste Brasileiro, tomando como base a decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, decorrente do Pedido de Providências da OAB/RJ.
Entretanto, outros estados onde os Tribunais contam com Regimentos Internos rigorosos com relação à indumentária necessária para o ingresso de pessoas (advogados, estagiários, juízes, servidores e público em geral) aos ambientes do Poder Judiciário, são resistentes as mudanças sociais e desconsideram inclusive as peculiaridades regionais como o calor excessivo nos horários de pico.
Entretanto, o problema se agrava quando se fala na vestimenta da mulher advogada, a qual gera rejeição ou escândalo, normalmente quando “foge do padrão” socialmente imposto, padrão este que inclusive foi quebrado em parte, no Supremo Tribunal Federal - STF, onde a Min. Cármem Lúcia ousou ser a primeira ministra a usar calças compridas nas sessões, vestimenta tipicamente usada por homens nos Tribunais desde seus primórdios.
O art. 58, XI, do Estatuto da Advocacia, é genérico na disposição a respeito da indumentária do profissional de Direito e guarda um resquício de desigualdade de gênero, pois mantém o termo “advogados”, num universo onde hoje, advogadas são maioria em todo o Brasil. Segundo a última atualização realizada pela revista eletrônica Conjur e confirmada pela OAB Nacional, em 2021, o número de advogadas é de 610.369 e de advogados 610.207 [3].
Já a Cartilha de Prerrogativas da Mulher Advogada, elaborada pelo Conselho Federal da OAB/DF, lançada em 2019[4], a partir do Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, criado pelo Provimento nº. 164/2015, do Conselho Federal da OAB, com o objetivo de fortalecer as prerrogativas da mulher advogada em específico, traz no seu bojo, o direito de ser e vestir o que quiser, mantendo-se, apenas, a obrigatoriedade de vestes talares em audiências, sustentações orais, ou quando a lei exigir, reforçando o direito da mulher advogada de exercer com liberdade e independência sua função, o que inclui a escolha de sua vestimenta, todavia, a cartilha não é por si só capaz de preservar a profissional do Direito de constrangimentos ou violações de prerrogativas, sendo necessária a regulamentação do dispositivo em questão.
Nas Seccionais onde o citado dispositivo ainda não foi regulamentado, os casos de violação são inúmeros, e um dos vários exemplos disto ocorreu em 2017, no Fórum de Palmas, onde uma advogada foi impedida de ingressar no Fórum por estar trajando um vestido curto[5], o que violaria a Resolução nº. 5 de 2015, que regulamenta sobre o acesso de pessoas nas dependências desse Tribunal. Outro exemplo de violação da autonomia ocorreu em 2019 no Estado de Rondônia, quando uma advogada que trajava blusa e calça jeans de cor preta foi submetida à situação vexatória de extremo constrangimento moral, sendo impedida de entrar no Tribunal de Justiça por estar “com tudo para fora”, em suposta ofensa à Instrução nº. 14/2017 do referido órgão, que dispõe sobre o acesso de pessoas às unidades do Poder Judiciário do Estado.
Ambos os fatos envolvendo advogados e advogadas, embora tenham gerado indignação, geraram apenas uma nota de desagravo por parte das Comissões da Mulher Advogada das respectivas Seccionais onde as advogadas foram desrespeitadas, foram publicadas, diferentemente da situação ocorrida com o advogado em Duque de Caixas, em que houve decisão do CNJ, de acordo com a qual, compete privativamente às Seccionais da OAB dispor sobre a vestimenta dos advogados, evidenciando uma desigualdade de tratamento quando o assunto é a vestimenta da mulher advogada.
Os casos apresentados refletem não apenas a intolerância, violação ao Estatuto da Advocacia e ainda, violação da independência funcional dos profissionais no exercício da sua função, mas, a insegurança em razão da falta de regulamentação e uniformização das Seccionais a respeito do tema.
Fomentar o debate interinstitucional em torno da Regulamentação do art. 58, XI, da Lei nº. 8.906/94, é cada vez mais necessário, principalmente quando estamos diante de um ambiente tradicionalmente formal e de ritos quase litúrgicos adotados pelos Tribunais e outros menos rigorosos, mas igualmente formais como Ministério Público, Defensorias, Promotorias etc. e os órgãos de Classe como a OAB. Nessa perspectiva, será possível também conscientizar a sociedade a respeito de um tema tão sensível quanto à objetificação da mulher em razão da sua vestimenta à qual revela não a relação entre a mulher e suas roupas, mas os preconceitos estabelecidos por uma sociedade que censura quem ousa ser diferente.
As mulheres vêm conquistando direitos desde os anos 70, tornando-se independentes, ocupando cada vez mais espaços de liderança e poder, entretanto, a estigmatização à qual é submetida, principalmente nos ambientes coorporativos, ainda é a mesma do passado, o que a obriga a seguir padrões de comportamento e até de beleza estabelecidos e exigidos pela sociedade[6].
Estes padrões se aplicam a todas as mulheres, sejam advogadas ou não. Em O Mito da Beleza, a escritora Naomi Wolf[7] nos alerta sobre o fato de que a sociedade, desde os anos 70, ao estereotipar a mulher, faz uma relação entre a roupa que veste à sua capacidade profissional ou a ausência dela.
Este assunto em discussão poderá provocar reflexão entre advogados, advogadas e a sociedade, e, enquanto o debate não for suficientemente aprofundado, o assunto estará relegado ao banalismo por suposta desnecessidade de discussão em razão do conceito sacramentado de que a mulher é o que veste, e que homem no ambiente jurídico somente estará preparado para defender o seu cliente se estiver de paletó e gravata. Operadores do Direito são essenciais à justiça, portanto, precisam, no exercício da sua função, a segurança e a liberdade de ser e exercer livremente, sem preconceitos de qualquer natureza, sua profissão.
[1]https://wwwh.cnj.jus.br/cnj-arquiva-pedido-da-oabrj-sobre-uso-de-terno-e-gravata-em-tribunais/ [2] https://www.oabrn.org.br/arquivos/2018/resolucoes/Resolucao-006-2018-traje-advogados-e-advogadas-alterada.pdf [3] https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/numero-advogadas-supera-advogados-vez-brasil [4] https://www.oab.org.br/Content/pdf/Cartilha_Prerrogativas_Mulheres.pdf [5] https://conexaoto.com.br/2017/04/13/regras-de-trajes-no-exercicio-da-profissao-nao-podem-atingir-mulher-advogada-defende-a-oab [6] FRIEDAN, Betty. Mística feminina Petrópolis: Vozes, 1971. [7] WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens são usadas contras as mulheres/Naomi Wolf; tradução Waldéa Barcellos – 1ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.