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Andressa Munaro Alves e Rodrigo Rojas de Souza

O Juiz de Direito e a IA: uma harmonia necessária ao Poder Judiciário

O conceito de Inteligência Artificial, bem como o seu uso se popularizou recentemente diante da disponibilização do Chat GPT-3, em 30 de novembro de 2022, e atraiu mais de cem milhões de usuários em um período de aproximadamente três meses[1]. A sociedade, que já usufruía dos frutos dessa tecnologia muito antes desse marco, mesmo de forma discreta, uma vez mais, viu-se acometida pelas novidades oriundas de sua utilização. Cita-se, à título de exemplo, alguns desses benefícios já explorados pela população: os sistemas de recomendação em plataformas de streaming, que utilizam algoritmos para sugerir conteúdo aos usuários com base em seus gostos, comportamento de visualização anteriores, algoritmos de busca na internet, os assistentes virtuais em dispositivos móveis, como a Siri da Apple, Google Assistant, Alexa da Amazon e Samsung Bixby, que funcionam através da integração de tecnologias de processamento de linguagem natural, reconhecimento de voz e aprendizado de máquina, bem como a tradução automática de texto entre diferentes idiomas e os carros autônomos.

 

Bem da verdade, o desejo de desenvolver um mecanismo ou criatura capaz de imitar as habilidades humanas é muito antigo. Tanto é, que existem registros[2] de diversas narrativas mitológicas envolvendo a ideia de autômatos, como o mito grego de Prometeu e o mito hebraico de Golem. “Os primeiros registros de criaturas artificiais com habilidades humanas têm uma forma mítica ou por vezes lendária, tornando difícil uma separação nítida entre imaginação e realidade[3]. Entretanto, a gênese de um projeto efetivo da Inteligência Artificial está associada ao período que sobrevém a Segunda Guerra Mundial e condicionada ao surgimento dos computadores modernos.

 

Nesse período, Alan Mathison Turing, matemático inglês responsável pela decodificação das cifras alemãs interceptadas pelos Aliados na Guerra[4], desempenhando papel crucial para a derrota dos nazistas, descobriu o princípio fundamental do funcionamento dos computadores modernos, o qual serve de norte para a construção dessas máquinas até hoje, independentemente do seu nível de sofisticação.[5] No ano de 1950, o cientista já se questionava se uma máquina poderia pensar, motivo que lhe motivou a criar o “Teste de Turing”. O experimento consiste em submeter uma pessoa a conversar com um programa computacional por mensagens escritas e, se o comportamento da máquina for indistinguível daquele exibido por um ser humano, é possível presumir que essa máquina detém a capacidade de pensar.[6]

 

A partir de então, com o surgimento de máquinas ditas como “pensantes”, a comunidade científica percebeu que havia se iniciado uma revolução que influenciaria a psicologia, a linguística e a filosofia. “A ideia de estudar a mente humana à semelhança de um programa de computador parecia despontar como uma nova etapa para as ciências humanas”.[7]

 

Além das referidas áreas do conhecimento, a Inteligência Artificial já aparece no Poder Judiciário, o qual vem incessantemente elaborando diversos projetos para a utilização dessa tecnologia e a empregando a fim de auxiliar Magistrados e Servidores, melhorando a produtividade e conferindo celeridade aos processos judiciais. Entretanto, diante da tamanha capacidade tecnológica que essa ferramenta exala, questiona-se: a Inteligência Artificial é capaz de substituir o Juiz de Direito na tomada de decisões judiciais?

 

Na tentativa de iniciar alguma possibilidade de resposta, mesmo considerando que a envergadura do assunto é deveras profunda e exigirá estudos constantes, passa-se a analisar a decisão proferida em 19 de julho de 2023, no mandado de segurança distribuído sob o nº 0020511-17.2022.5.04.0000[8], pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, de relatoria do Desembargador Marcelo José Ferlin D'Ambroso, em acórdão assim ementado:


MANDADO DE SEGURANÇA. QUEBRA DE SIGILOS TELEFÔNICO E TELEMÁTICO PARA FORNECIMENTO DE DADOS E DE REGISTROS DE GEOLOCALIZAÇÃO DO IMPETRANTE PARA FINS DE INSTRUÇÃO PROCESSUAL. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS VIOLADOS. ILEGALIDADE. 1. A exigência dos dados de geolocalização do impetrante enseja evidente afronta à garantia fundamental da inviolabilidade das comunicações (conforme art. 5º, XII, da Constituição da República), bem como aos direitos à privacidade e à intimidade previstos no inciso X do mencionado dispositivo constitucional. 2. Decisão impetrada ofensiva a dispositivos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, bem como da Lei nº 13.709/2018 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais ( LGPD). 3. Princípio da progressividade e interpretação pro persona. Os direitos humanos não comportam interpretações restritivas, mas tão somente ampliativas e fulcradas na que melhor atenda aos direitos e garantias fundamentais da pessoa. 4. Quebra de sigilo telefônico e de correspondência admitido apenas em processo criminal, sendo inviável o procedimento no processo do trabalho, de natureza cível. 5. O direito à privacidade deve ser considerado no sentido amplo, abrangendo todas as manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade das pessoas, inclusive os dados de geolocalização. Segurança concedida parcialmente para cassar a decisão apontada como coatora, por entendimento da maioria do Julgadores. (TRT-4 - MSCIV: 00205111720225040000, Data de Julgamento: 15/12/2022, 1ª Seção de Dissídios Individuais)

 

Trata-se de mandado de segurança impetrado por empregado contra o ato praticado pelo MM. Juízo da 3ª Vara do Trabalho de Pelotas, que deferiu a expedição de ofícios ao Facebook, Google e Twitter, a fim de que fossem fornecidos dados de geolocalização relacionados ao aparelho celular do impetrante referente aos anos de 2015 a 2020. Sem qualquer ressalva de horários, pretendia-se verificar a rotina laborativa nos finais de semana e feriados, visando produzir prova sobre seus horários de trabalho.

 

Alegou-se que:


que restou configurada flagrante violação ao seu direito de privacidade, [...] tal conduta processual viola de diferentes formas os seus direitos constitucionais estampados no art. 5º, X da CF e [...] a ordem exarada pela Autoridade Coatora imputa a terceiros do ônus da prova da jornada de trabalhador, em evidente intenção de lhe penalizar e a atribuir a terceiros (empresas de tecnologia) o ônus de prova que compete ao empregador quanto ao registro de jornada de seu empregado.

 

No caso, o Relator, em suma, fundamentou o seu voto afirmando que o fornecimento de dados de geolocalização do impetrante viola a garantia fundamental da inviolabilidade das comunicações, assim como os direitos à privacidade e intimidade previstos na Constituição Federal.

 

Diante do exposto, percebe-se que a controvérsia orbita em torno da análise de garantias fundamentais, bem como de uma possível violação dessas em prol da produção de provas em sede de reclamatória trabalhista. A partir disso, indaga-se: será que a Inteligência Artificial seria capaz de sopesar conceitos tão complexos? Para responder essa pergunta, é necessário compreender como essa tecnologia funciona.

 

A verdade é que a Inteligência Artificial “propicia aos sistemas a capacidade de aprenderem sozinhos e tomarem decisões autônomas, seguindo o processamento de dados e identificação de padrões[9]. Além disso, ela se utiliza do “Deep Learning”, isto é,[10]

 

um subconjunto de aprendizado de máquina, que é essencialmente uma rede neural com três ou mais camadas. Essas redes neurais tentam simular o comportamento do cérebro humano, embora longe de corresponder a sua capacidade, permitindo que ele “aprenda” com grandes quantidades de dados.

 

Portanto, entende-se que a decisão proferida por uma IA seria tomada baseada em uma análise de padrões de dados, a qual derivaria uma interpretação objetiva de princípios, direitos e garantias. No entanto, não é isso que se espera de um magistrado. Nessa senda,[11]

 

a máquina nunca terá a capacidade de compreender o fenômeno complexo que se desenvolve a partir de um processo, pois interpretar é por si ato por hermenêutico complexo, que depende da atividade humana, vinculada à capacidade de compreender a historicidade e desvelar a tradição.

 

Assim, percebe-se que a Inteligência Artificial, ao ser posta a decidir o caso citado, apesar de possuir capacidade de chegar a uma conclusão final de mérito, concedendo ou não a segurança, tende a interpretar erroneamente o significado dos direitos à privacidade e intimidade, bem como da garantia fundamental à inviolabilidade das comunicações, haja vista que está programada através de decisões objetivas e sem cunho personalíssimo da análise de mérito do caso concreto, conforme referidos no voto do Desembargador Marcelo José Ferlin D'Ambroso.

 

Aliás, além da incapacidade de exercer a hermenêutica, a Inteligência Artificial, por mais desenvolvida que seja, talvez não seja capaz de acompanhar o desenvolvimento e movimento da sociedade e de como se dão as suas relações. São muitos os fatores que influenciam e moldam um corpo social, como, por exemplo, políticas governamentais, avanços científicos e tecnológicos, movimentos sociais, mudanças na cultura, crises etc. Não é à toa que com frequência formulam-se novos códigos, leis e regulamentos para regular os novos tipos de relações jurídicas. Afinal, os conflitos do cotidiano nunca serão os mesmos e sempre envolverão novos e diferentes elementos na equação.

 

Dessarte, torna-se cada vez mais claro que o juiz de direito se mostra mais qualificado que a Inteligência Artificial na tomada de decisões judiciais na medida em que possui uma característica inerente ao ser humano: a intersubjetividade[12], isto é, a capacidade ou condição de compartilhar experiências, entendimento, significados e sentimentos com outros indivíduos, é a interação e compreensão mútua que ocorre entre as pessoas.

 

Dito isso, não se pretende dizer que a Inteligência Artificial é uma ferramenta dispensável para o poder judiciário, muito pelo contrário. A sua utilização para demandas repetitivas ou que exigem critérios estritamente objetivos, como a admissibilidade de recursos, é muito bem explorada atualmente e permite o direcionamento das atividades dos servidores para demandas mais complexas. E não só. Essa tecnologia proporciona (e ainda proporcionará) o desafogamento da demanda de trabalho judicial que, há muito, é objeto de críticas, dado que causa vários problemas decorrentes dessa realidade.

 

De toda sorte, pelos próprios elementos expostos nesse artigo, não há sinais de que esse potencial tecnológico que tem a habilidade de, de forma rápida, realizar toda e qualquer demandas repetitivas, esteja preparado para substituir o poder da livre apreciação da prova e do livre convencimento do Juiz de direito – e seu olhar humano –, assim como a sua capacidade própria de resolução, capacidade esta, que estes autores entendem, como a famigerada trabalhabilidade[13].



Sobre os autores

Andressa Munaro Alves: Doutoranda e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora de Direito do Trabalho e Previdenciário da Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS / UOL). Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Escola Superior Verbo Jurídico Educacional. Professora no Programa de Graduação em Direito nas Faculdades Integradas São Judas Tadeu. Advogada. andressa.castroalvesadv@gmail.com.

Rodrigo Rojas de Souza



[1] Só se fala sobre o ChatGPT, mas você sabe o que 'GPT' significa?. Traduttz. 21 mar 2023. Disponível em: https://www.traddutz.com.br/post/s%C3%B3-se-fala-sobre-o-chatgpt-mas-voc%C3%AA-sabe-o-que-gpt-significa. Acesso em: 26 fev 2024.

[2] BARBOSA, Xênia de Castro; BEZERRA, Ruth Ferreira. Breve Introdução à História da Inteligência Artificial. Jamaxi, v. 4, n. 1, 2020. Disponível em: https://teste-periodicos.ufac.br/index.php/jamaxi/article/view/4730/2695. Acesso em: 05 mar 2024.

[3] BARBOSA, Xênia de Castro; BEZERRA, Ruth Ferreira. Breve Introdução à História da Inteligência Artificial. Jamaxi, v. 4, n. 1, 2020. Disponível em: https://teste-periodicos.ufac.br/index.php/jamaxi/article/view/4730/2695. Acesso em: 05 mar 2024.

[4] Condenado por homossexualidade, homem que quebrou código nazista recebe perdão. 24 dez 2013. 24 dez. 2013. BBC NWS BRASIL. Disponível em: Condenado por homossexualidade, homem que quebrou código nazista recebe perdão - BBC News Brasil. Acesso em 03 mar 2024.

[5] TEIXEIRA, João. O que é inteligência artificial. 3. ed. E-Galáxia, 2019. p. 9 – 10. E-book. Disponível em: O que é inteligência artificial - Google Play Livros. Acesso: 26 fev 2024.

[6] ESTRADA, Manuel Martín Pino. Inteligência artificial e direito. Revista Eletrônica Direito & TI, v. 1, n. 3, p. 1-2, 2015. Disponível em: Vista do Inteligência Artificial e Direito (emnuvens.com.br). Acesso em: 04 mar 2024.

[7] TEIXEIRA, João. O que é inteligência artificial. 3. ed. E-Galáxia, 2019. p. 9 – 10. E-book. Disponível em: O que é inteligência artificial - Google Play Livros. Acesso: 26 fev 2024.

[8] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Mandado de Segurança nº 0020511-17.2022.5.04.0000. Decisão proferida em: 19 de julho de 2023. Desembargador Marcelo José Ferlin D'Ambroso.

[9] BARBOSA, Lucia Martins; PORTES, Luiza Alves Ferreira. Associação Brasileira de Tecnologia Educacional. Revista Tecnologia Educacional. Rio de Janeiro, n. 236, p. 19, jan./mar. 2019. Disponível em: http://abt-br.org.br/wp-content/uploads/2023/03/RTE_236.pdf#page=16. Acesso em: 29 fev 2024.

[10] O que é o Deep Learning?. IBM. Disponível em: https://www.ibm.com/br-pt/topics/deep-learning. Acesso em: 29 fev 2024.

[11]  STRECK, Lenio Luiz; BERNSTS, Luísa Giuliani; GOMES, Jefferson de Carvalho. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2021, vol. 13, n. 25, p. 338, ago./dez., 2021. Disponível em: https://www.abdconstojs.com.br/index.php/revista/article/view/404/276. Acesso em: 02 mar 2024.

[12] ALVES, Andressa Munaro. Escusas à IA, mas a trabalhabilidade é essencial. Revista Capital Jurídico. 2024, n. 1. Disponível em: https://www.revistacapitaljuridico.com.br/post/escusas-a-ia. Acesso em: 29 fev. 2024.

[13] ALVES, Andressa Munaro. A Trabalhabilidade como direito social fundamental: O critério

da ponderação como alternativa à sua realização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023.

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