Sabemos que para sobreviver e se desenvolver o ser humano necessita de convivência e interação, o que gera tensões e conflitos entre os indivíduos. Assim como tudo na vida acontece por meio de relações, os conflitos existem nas dinâmicas relacionais. A própria história da humanidade geralmente é contada através de datas e períodos de guerras.
E no contexto de um Brasil multirracial, com grande diversidade cultural e desigualdade econômica, há uma permanente e latente litigiosidade, enquanto que o Poder Judiciário historicamente não tem conseguido atender sua demanda com a prontidão e qualidade necessárias.
Por isso, já em 2004 a Reforma do Judiciário e a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criaram mecanismos para agilizar o julgamento de processos. Além disso, nos últimos 15 anos tem havido grande incremento de tecnologias de inteligência artificial no meio jurídico, tais como implantação de processos eletrônicos, realização de audiências por videoconferência, oferta de avançados softwares jurídicos para advocacia, etc.
No entanto, a despeito da relativa agilização no julgamento formal de litígios com a automatização de procedimentos jurídicos, tem se constatado que o encerramento do processo nem sempre soluciona o conflito entre as pessoas e nem diminui a litigiosidade social.
O relatório anual Justiça em Números, do CNJ, aponta que nos últimos anos são abertos cerca de 30 milhões de processos judiciais em todo Brasil, existindo um acúmulo de aproximadamente 80 milhões de processos no Poder Judiciário. E uma das causas desse elevado número de demandas judiciais é a abertura de novos processos sobre conflitos que de fato não foram solucionados em julgamentos anteriores, realizados de forma mecânica, automatizada e com foco no atendimento de metas formais, mas sem alcançar as reais causas do conflito.
Por mais que a inteligência artificial possa auxiliar as atividades humanas, seu alcance vertical do conflito é limitado, pois os recursos tecnológicos operam exclusivamente no modelo cartesiano-mecanicista de pensamento, baseado na dualidade certo x errado. Isso serve perfeitamente para lidar com máquinas: elas funcionam ou não funcionam, estão consertadas ou quebradas, são úteis ou descartáveis. No entanto, para compreender e lidar adequadamente com as relações humanas, o modelo cartesiano-mecanicista é insuficiente, sendo necessário utilizar modelos complexo-sistêmicos.
Na dimensão individual cada ser humano em si já é extremamente complexo devido aos conteúdos psicológicos inconscientes que são armazenados no cérebro emocional (límbico) desde as primeiras semanas de gestação, ainda no útero materno. Já na dimensão coletiva, cada pessoa provém de um sistema familiar distinto e está inserida em inúmeros sistemas sociais e culturais, com seus diferentes padrões ocultos de comportamento, que exercem profundas influências sobre o indivíduo.
Ademais, já demonstrado pela teoria geral dos sistemas que o comportamento de cada indivíduo sempre está vinculado aos demais membros que compõem seus sistemas, de forma que os problemas e conflitos são interdependentes e sempre surgem numa dinâmica relacional disfuncional, decorrente de um contexto sistêmico com múltiplas influências presentes, porém inconscientes.
Nesse sentido, os modelos complexo-sistêmicos de pensamento têm demonstrado que problemas e conflitos nunca apresentam uma única causa, mas sim emergem forçados por várias causas sistêmicas e relacionais ocultas. Significa dizer que quando emerge uma dificuldade ou conflito, o indivíduo aparentemente problemático não é o único e exclusivo responsável. Num contexto sistêmico, relacional e interdependente, todos os elementos se influenciam e ao mesmo tempo todos tem algum benefício e alguma responsabilidade nas dinâmicas e nos eventos que acontecem.
Postura que permite a compreensão mais ampla do conflito.
Com isso, fica clara a insuficiência do pensamento cartesiano-mecanicista para compreensão e real resolução de conflitos humanos, pois é dual, binário, sempre buscando uma única causa, um único responsável e, consequentemente, acredita que para resolver um problema basta eliminar, substituir ou excluir o elemento tido por problemático.
Entretanto, assim como um anestésico não cura a doença e ela reaparece se suas causas não são tratadas, os conflitos também ressurgem quando se tenta solucioná-los trocando ou excluindo algo que é meramente aparente, porém, sem olhar e reequilibrar as dinâmicas sistêmicas ocultas.
Inexplicavelmente, processos de inventário se prolongam por anos com litígio entre irmãos herdeiros, onde cada um imagina estar honrando seus pais. Ou casais que se uniram, se amaram, tiveram filhos e viveram anos maravilhosos, acabam litigando em processos intermináveis, supostamente por bens patrimoniais ou pela guarda de filhos.
Geralmente os bens materiais são a ponta do iceberg, enquanto as reais causas do conflito são questões sistêmicas desequilibradas que permanecem ocultas. Se em algum momento aquilo que está invisível for olhado, os nós e emaranhados podem se transformar em laços e o conflito se converter em solução, restaurando-se as relações interpessoais.
Nesse contexto, nos últimos anos tem havido um interesse crescente pelo direito sistêmico, que não se trata de um novo ramo jurídico para tratar de determinados conflitos humanos e sociais. O Direito Sistêmico se propõe a fomentar uma postura mais consciente das partes e dos profissionais da área jurídica frente aos conflitos, na qual o diferencial não seja o QUE fazer (aplicar a lei), mas sim COMO fazer a aplicação da lei.
É preciso dizer que, na realidade, o Direito sempre é sistêmico. Então, mais do que criar algo novo, se trata de uma percepção mais consciente do contexto sistêmico dos conflitos e da interdependência dos indivíduos conflitantes. A história e a antropologia demonstram que essa percepção já era sentida e percebida de algum modo pelos antigos povos nativos (africanos, indígenas americanos, havaianos, maoris, etc.), cuja visão interdependente da vida lhes proporcionava uma consciência da identidade coletiva maior que a identidade individual e se materializava em diversos modelos circulares, participativos e comunitários de tratamento e solução de seus conflitos.
Então o que até aqui entendemos como Direito Sistêmico é a postura que permite a compreensão mais ampla do conflito, que considera as partes como elementos de um sistema interdependente e que pressupõe que as dificuldades surgem na dinâmica relacional em razão de causas muitas vezes não percebidas, tais como traumas emocionais inconscientes ou padrões sistêmicos disfuncionais com exclusões, desordens e desequilíbrios.
A postura de olhar o conflito como uma consequência de causas sistêmicas inconscientes tem o objetivo de ampliar a consciência das partes sobre a dinâmica relacional interdependente e a corresponsabilidade de cada uma nos seus custos e benefícios. Se isso acontece, aumentam as probabilidades de cada um deixar de ver o outro como inimigo, problema ou obstáculo (postura adversarial) e se torna possível a identificação de interesses mútuos e convergentes (postura consensual).
Nesse sentido, o Direito Sistêmico se alinha perfeitamente à política nacional de tratamento adequado de conflitos e à concepção de um sistema jurídico multiportas, se inserindo como modelo voltado à consensualidade e à resolução pacífica de conflitos preconizada pela Constituição Federal, pelo Código de Processo Civil, pela Lei de Mediação, pela Resolução do CNJ nº 125/2010 e pelo Código de Ética da Advocacia, fornecendo diferentes métodos, técnicas e meios sistêmicos de solução, adequados à natureza e peculiaridade de cada conflito, tais como a Comunicação Não Violenta, a Constelação Sistêmica e os Círculos da Paz, que podem perfeitamente ser utilizados em contextos judiciais ou extrajudiciais, na mediação, na Justiça Restaurativa e nas Práticas de Advocacia Colaborativa e nos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMECs) e Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs).
Nas palavras do juiz Sami Storch, do Tribunal de Justiça da Bahia, pioneiro na utilização da constelação familiar como metodologia de facilitação na solução de conflitos e no uso da expressão Direito Sistêmico perante a comunidade jurídica, a visão sistêmica do Direito é aquela na qual “só há direito quando a solução traz paz e equilíbrio para todo o sistema”.
E para a advogada Eunice Schlieck, presidente da 1ª Comissão de Direito Sistêmico criada no Sistema OAB, na Seccional de Santa Catarina, o Direito Sistêmico é um campo de conhecimento percebido pela “observação fenomenológica de que todas as manifestações de vida são redes formadas por subjetividades e necessidades singulares, que oferece elementos para o exercício de uma Justiça mais humana e pacificadora”.
Em franca expansão, o Direito Sistêmico tem sido elogiado e recomendado pelo CNJ, existindo no país dezenas de juízes e centenas de advogados que já atuam com uma postura sistêmica diante das partes e clientes, bem como projetos e práticas oficiais em 19 Tribunais de Justiça dos estados, além de outras esferas do Poder Judiciário, tais como a Justiça Federal em Florianópolis e a Justiça do Trabalho em Goiânia e Maceió.
E no contexto do Sistema OAB, a Comissão de Direito Sistêmico da Seccional do Acre foi criada pela Resolução 56, de 8 de outubro de 2019, se juntando à Comissão Especial do Conselho Federal, a outras 15 comissões de âmbito estadual e mais de 80 comissões de subseções espalhadas por todo o país, com o objetivo de expandir o pensamento sistêmico junto aos profissionais do Direito no Estado do Acre e disseminar práticas sistêmicas e restaurativas para solução adequada de conflitos.
Luciano Trindade é Presidente da Comissão de Direito Sistêmico da OAB/AC, advogado mestre em Direito/Relações Internacionais, e constelador sistêmico certificado pelo Infosyon/Alemanha.
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