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Ana Clara Fernandes Queiroz e Raimundo de Araújo Coivara Neto

O acesso à justiça como ferramenta para desenvolvimento

Durante muito tempo, o conceito de desenvolvimento foi amplamente baseado na análise de indicadores exclusivamente econômicos e de produtividade de riqueza. Parâmetros como a renda e o Produto Interno Bruto (PIB), por exemplo, foram usados como medida principal para alcançar um desenvolvimento efetivo. Entretanto, a partir dos anos 1970 o termo desenvolvimento deixou de ser exclusivo das práticas econômicas e começa a aderir-se em outras noções diversas, como, desenvolvimento social, humano e sustentável.


O advento de novos paradigmas econômicos e de novas formas de organização social evidenciou colocou em cheque a capacidade desses indicadores como ferramentas de aferimento das realidades. Foi observado que alguns países e populações, mesmo sendo menos produtivos em termos materiais, desfrutavam de níveis mais elevados de satisfação com a vida em comparação com outros onde os cidadãos desfrutavam de maiores facilidades e conseguiam maiores quantidades de bens e riqueza materiais.


Em 1999, o economista indiano Amartya Sen abordou esse fenômeno de forma concisa em sua obra “Desenvolvimento como Liberdade”, na qual apresentou uma perspectiva única do desenvolvimento humano. Em sua tese, Sen sustenta que o verdadeiro desenvolvimento não pode ser simplificado apenas em termos de indicadores econômicos, como a renda e a riqueza, mas deve ser compreendido como uma ampliação das liberdades individuais e das oportunidades disponíveis para que as pessoas busquem suas próprias aspirações e viva uma vida digna.


A probabilidade de um homem negro norte-americano viver até uma idade avançada é menor do que a de um homem indiano de Kerala satisfazer esta condição, ainda que a renda esperada do primeiro grupo seja muitas vezes superior à do segundo [...] podemos chegar a juízos muito diferentes sobre os seus padrões de vida, caso estes sejam analisados com base na renda per capita ou na esperança de vida. Se fosse analisada somente a renda dos dois grupos, poder-se-ia concluir prematuramente que o padrão de vida dos homens afrodescendentes dos Estados Unidos é muito melhor do que o padrão de vida dos homens de Kerala. (PINHEIRO, 2012, p.29).


Do exemplo supomos que, por mais que a renda per capita nos Estados Unidos seja superior a da Índia, a expectativa de vida de um homem em Kerala é maior do que de um homem negro nos EUA. Tal situação demonstra que a renda, estritamente, não é suficiente para avaliar a real condição social dos indivíduos, ou seja, é um indicador insuficiente e falho para estimar o bem-estar da coletividade.


Por sua vez, Amartya Sen argumenta enfaticamente que o desenvolvimento deve ser abordado a partir de uma perspectiva mais ampla, focando em um conjunto abrangente de variáveis que afetam a qualidade de vida das pessoas. Isso inclui fatores como idade, gênero, educação, expectativa de vida, qualidade ambiental (ar e água), saúde, condições sociais, disparidades climáticas e acesso à justiça.


O cerne da abordagem de Sen está nas “liberdades substantivas”. Nesse sentido, as liberdades substantivas incluem as liberdades políticas, mas também as econômicas, sociais e culturais. Todas essas formas de liberdade são cruciais para promover o desenvolvimento humano de maneira integral e significativa. Portanto, a análise de Sen nos lembra de que o desenvolvimento não pode ser avaliado apenas por números econômicos, mas deve considerar o bem-estar e a capacidade das pessoas de moldarem suas próprias vidas de acordo com suas aspirações e necessidades individuais, exercendo escolhas e alcançando uma verdadeira autodeterminação.


Dessa forma, a agência individual é o elemento central do desenvolvimento, logo, as pessoas devem ser vistas como agentes ativos que têm a capacidade de tomar decisões informadas e agir de acordo com suas preferências, em vez de serem vistas como meros receptores passivos de políticas governamentais. O autor enfatiza, ainda, a importância de capacitar às pessoas a fazerem escolhas significativas em suas vidas. Isso inclui a capacidade de acessar serviços de saúde, educação, participar da vida política, ter segurança econômica e buscar suas aspirações individuais.


Nesse contexto, o Estado e as instituições justiça são instrumentos fundamentais para a garantia das liberdades como base do desenvolvimento, como defendido pelo economista indiano. Isso abrange não apenas as liberdades políticas e econômicas, mas também as liberdades sociais e culturais. Para que isso ocorra de maneira efetiva, é essencial garantir que todos os cidadãos, especialmente aqueles com menos liberdade, tenham acesso aos instrumentos necessários para fazer valer seus direitos.


No Brasil, além do próprio Estado que desempenha um papel fundamental nessa missão os órgãos de acesso à jurisdição e os órgãos encarregados de fiscalizar e garantir o cumprimento dos preceitos constitucionais fundamentais desempenha um papel vital. Dois exemplos notáveis são Ministério Público e a Defensoria Pública.


Essas instituições são essenciais em duas frentes cruciais. Primeiramente, elas possibilitam que os cidadãos busquem efetivamente a concretização de seus direitos perante o sistema judiciário. Isso é fundamental para garantir que os indivíduos não sejam privados de seus direitos por falta de recursos ou conhecimento legal.


Além disso, esses órgãos são mecanismos de expansão das liberdades individuais. Eles não se limitam apenas a responder a reclamações, mas também têm a responsabilidade de identificar lacunas no sistema e propor soluções para melhorar a proteção dos direitos dos cidadãos. Isso envolve não apenas reagir a violações de direitos, mas também agir preventivamente para promover a justiça e a igualdade.


Outrossim, correlacionando com a visão de direito oriunda da análise jurídica racionalizadora do filósofo e teórico Mangabeira Unger. Para Unger (2004) “direito como o resultado de uma série de acordos num conflito bem-ordenado de interesses organizados”, isto é, é considerado a diversidade de perspectivas dos indivíduos, agentes políticos e econômicos que garante os direitos fundamentais para uma configuração democrática nas normas jurídicas. Assim, cabe ao direito regular à aplicação da justiça como catalisador de transformações sociais que afetam e são afetadas pelo comportamento destes agentes, lembrando que é claro o papel das instituições e do Estado o dever de prover a igualdade e justiça, seja no campo econômico, bem como no cenário jurídico, social e cultural.


Em conclusão, fica evidente que a justiça, o Estado e a perspectiva do desenvolvimento como liberdade desempenham papéis interligados e essenciais na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A justiça atua como um instrumento fundamental para garantir igualdade perante a lei, enquanto o Estado desempenha um papel multifacetado na promoção de direitos, acesso a serviços essenciais e na correção de desigualdades. A abordagem do desenvolvimento como liberdade e a asseguração do acesso à justiça se complementam, permitindo que os indivíduos alcancem sua autodeterminação e expandam suas liberdades individuais. No centro desse esforço, encontra-se a busca por uma sociedade que não apenas respeite os direitos fundamentais, mas também promova uma equidade genuína e a realização das aspirações de todos os seus membros. Portanto, esses elementos juntos contribuem para a construção de um mundo mais justo e equitativo, onde todos têm a oportunidade de viver vidas dignas e plenas.


REFERÊNCIAS

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. As Liberdades Humanas como bases do Desenvolvimento: uma análise Conceitual da Abordagem das Capacidades Humanas de Amartya Sen. Rio Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, 2012.

UNGER, Roberto Mangabeira. O Direito e o Futuro da Democracia. 1.ª e.d., São Paulo: Boitempo, 2004.



OS AUTORES

Raimundo de Araújo Coivara Neto é Graduando do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Acre (Campus Floresta), atualmente cursando o 6° Período, e Assistente Operacional no Ministério Público do Estado do Acre.


Ana Clara Fernandes Queiroz é Graduanda do Curso de Bacharelado em Direito, atualmente matriculada no 6º período, da Universidade Federal do Acre, Campus Floresta. Não somente, Ana Clara desempenha um papel crucial como Assistente Jurídico na Associação Elas Existem - Mulheres Encarceradas e dedica seu tempo também como estagiária de direito na Defensoria Pública do Estado do Acre.

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