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Foto do escritorPâmela Ferreira da Silva

Famílias simultâneas

Atualizado: 22 de fev. de 2023

Ouça a versão em áudio deste artigo pelo Spotify ou pelo Youtube.


Recentemente, o debate sobre a não monogamia ganhou espaço nos meios de comunicação, isso se deu pelo fato de algumas pessoas públicas se manifestarem adeptas a esse tipo de relação, a exemplo de Juliette, vencedora do Big Brother Brasil 2021, que declarou o desejo de viver um poliamor, bem como o astro de Hollywood Will Smith que assumiu viver em um casamento não monogâmico.


Para além disso, muitas pessoas – como essa autora que vos escreve ou até mesmo você leitor – conhece ou já ouviu falar em alguém que possui duas famílias em lugares diferentes, fenômeno conhecido pelo direito como famílias simultâneas.


Antes de adentrarmos ao tema do artigo, se faz necessário esclarecer os conceitos de não monogamia, poliamor e famílias simultâneas.


A não monogamia é um gênero do qual decorre várias espécies, isto é, esse termo é usado para definir modelos de relações que não são baseadas na exclusividade sexual, a exemplo do poliamor e as famílias simultâneas.


A autora Luiza Soalheiro em seu livro Famílias simultâneas: um arranjo familiar não monogâmico, conceitua famílias simultâneas como “um arranjo familiar segundo o qual um indivíduo escolhe viver concomitantemente como componente de duas ou mais entidades familiares”. (SOALHEIRO, 2019, p. 17).


Dessa forma, as famílias simultâneas, também conhecidas por paralelas, plúrimas ou múltiplas, podem ser conceituadas como a existência de dois ou mais núcleos familiares diferentes e simultâneos entre si, sendo que geralmente um não tem conhecimento do outro, o que não é uma regra, pois podem existir casos em que se tem ciência da existência de outro lar e relação conjugal concomitantemente.


No poliamor, a convivência simultânea ocorre dentro do mesmo núcleo familiar, isto é, a simultaneidade de relações ocorre dentro da mesma casa, por exemplo, um homem e duas mulheres vivendo no mesmo lar, e obviamente com o conhecimento e consentimento de todos os envolvidos.


Apesar da importância de todas essas formas de relacionamento, esse artigo abordará apenas as famílias simultâneas, por ser um fenômeno recorrente na sociedade brasileira, e a prova disto é a expressiva quantidade de litígios que chegam perante o Poder Judiciário, para que este se posicione sobre a matéria e apresente a solução mais justa possível para o caso em concreto.


A família sempre foi uma entidade de extrema importância na história, desde os tempos mais remotos quando os seres humanos descobriram que a permanência juntos poderia trazer mais longevidade ao grupo, até os tempos atuais onde a família tem a finalidade de proporcionar melhores condições de desenvolvimento pessoal e social para os seus integrantes.


É certo que o conceito e a estrutura da família sofreram significativas transformações com o passar dos anos, pois, inicialmente, uma família somente poderia ser constituída através do casamento, não existia nenhuma outra forma de instituir um núcleo familiar senão pelo advento do matrimônio.


Desta forma, os relacionamentos que não possuíam a chancela do casamento e que eram baseados na convivência, como a união estável, recebiam o nome claramente pejorativo de concubinato.


Com o passar do tempo e as mudanças sociais, a sociedade passou a tolerar uniões informais (o que mais tarde seria chamado de uniões estáveis), logo, o casamento não era mais a única forma de instituir uma família, sendo que até mesmo as classes mais altas passaram a adotar esse novo tipo de junção matrimonial.


Com o advento da Constituição Federal de 1988, finalmente as uniões estáveis passaram a ser reconhecidas juridicamente, assim como outras formas de família, a exemplo do que preceitua o § 4º, do artigo 226, da CF, ao dizer que também se entende por entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, isto é, a família monoparental.


Não há duvidas que esses “novos” modelos de família a bem da verdade já existiam há muito tempo, entretanto, somente foram reconhecidos após a edição da Carta Magna.


Da leitura e interpretação da Constituição Federal é possível afirmar que os tipos de famílias citados em seu texto (monoparental e união estável) são apenas exemplos de novos contornos de entidades que podem se formar, não se tratando de um rol taxativo, mas sim exemplificativo, motivo pelo qual é plenamente viável a aceitação de outros modelos de família, a exemplo das famílias paralelas.


É notório que a história do surgimento da união estável se assemelha à situação das famílias paralelas, pois assim como essas, a união estável, a princípio, também não era reconhecida e somente após muito debate e reflexão conseguiu seu devido reconhecimento.


Diante desse breve relato, é possível concluir que nem tudo aquilo que é proibido ou que não é aceito, significa que está errado, muitas vezes falta apenas uma evolução de pensamento, a exemplo da união estável e também das relações homoafetiva.


Apesar de todos esses esforços para o reconhecimento das famílias simultâneas, o Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões, fixou duas teses no sentido de não emprestar validade e efeitos às famílias paralelas.


O primeiro caso diz respeito a uma mulher que pleiteou o rateio do benefício da pensão por morte com a viúva do de cujus, argumentando que possuía união estável com ele na época em que já era casado.


O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal e a corte se manifestou contra o deferimento do pleito da companheira, fixando a seguinte tese de repercussão geral nº 526:


É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável. (Revista Consultor Jurídico, 2021, online).

Além do caso acima narrado, o Supremo Tribunal Federal também julgou outra situação de extrema relevância para os fins de reconhecimento das famílias simultâneas.


Nessa segunda situação, discutia-se a possibilidade do reconhecimento de duas uniões estáveis vividas ao mesmo tempo, cujo objetivo também era o rateio de pensão por morte entre os companheiros, inclusive, chamando a atenção o fato de que uma união estável era entre homem e mulher e a segunda união estável era homoafetiva.


O Supremo Tribunal Federal acabou por negar reconhecimento às uniões estáveis paralelas, fixando a tese de nº 529:


A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. (Revista Consultor Jurídico, 2021, online).

Em decisão ainda mais recente, proferida em setembro de 2022, o Superior Tribunal de Justiça reforçou o entendimento ao decidir que é incabível o reconhecimento de união estável simultânea, mesmo que iniciada antes do casamento.


No episódio em apreço, uma mulher conviveu por três anos com um homem antes de ele casar com outra pessoa e mesmo após o casamento, manteve o relacionamento por mais vinte e cinco anos.


Importante esclarecer que um dos argumentos mais usado pelos aplicadores do direito para barrar o reconhecimento da simultaneidade familiar é a monogamia.


No entanto, a monogamia é apenas um ideal religioso, resultado dos vários séculos de influência da igreja católica sobre a comunidade, o que até hoje ainda reflete no modo de viver das pessoas, e que não pode ser usada como argumento válido para o não reconhecimento das famílias paralelas.


O grande debate em torno da monogamia consiste no fato de ela estar sendo tratada como um princípio jurídico, enquanto na verdade, a monogamia é apenas um valor.


Nesse cenário, se faz necessário distinguir o que são princípios e o que são valores.


Princípios são mandamentos gerais que guiam uma sociedade, a título de exemplo é possível citar o princípio da dignidade da pessoa humana, que é utilizado para fundamentar vários direitos e garantias aos seres humanos em diversos países ao redor do mundo.


Os valores, por sua vez, possuem um viés ético, são as escolhas que cada pessoa toma de como guiar sua vida. Esses valores, inclusive, podem não ser permanentes e imutáveis, isto é, eles podem mudar com o tempo, o que um indivíduo considera errado hoje, pode não mais assim o considerar daqui alguns anos, tudo dependerá das experiências e compreensões de cada ser humano.


Desta forma, é de extrema importância separar muito bem o que são princípios e o que são valores, pois os valores não são obrigatórios a todos, cada pessoa pode escolher seus próprios valores e conviver com eles por toda sua vida, enquanto os princípios são normas que devem ser obedecidas por toda a sociedade, independentemente das opiniões e valores de cada um.


A monogamia é um valor e, portanto, não pode ser tratada como princípio, pois não é razoável impor a monogamia a todas as pessoas de uma sociedade, porquanto cada um tem o direito de escolher o valor que acha mais adequado para sua vida, inclusive, se deseja ou não estar em uma relação monogâmica.


É certo que os fatos sociais antecedem à norma, ou seja, primeiro os eventos acontecem no mundo dos fatos para depois a norma regulamentar os acontecimentos.


Dessa forma, as famílias simultâneas não são um instituto criado pela doutrina ou inventado pelo legislador, pelo contrário, essas entidades familiares já se mantêm desde antes de qualquer previsão ou alteração legislativa, razão pela qual não cabe ao legislador ou ao aplicador do direito dizer se esta forma de relacionamento está correta ou errada.


As pessoas que fazem as leis e as que as aplicam não podem simplesmente fechar os olhos para a realidade que é a existência das famílias simultâneas, ignorando estes acontecimentos como se não fossem verdadeiros e não precisassem de regulamentação.


As famílias simultâneas são uma realidade no Brasil e ignorar esse fato não fará com que ela desapareça, muito menos diminuirá a quantidade de demandas que chegam perante o Poder Judiciário envolvendo o tema, razão pela qual essas entidades familiares merecem reconhecimento e proteção estatal.


O Poder Judiciário possui uma responsabilidade social sobre esse tema, pois a partir do momento que as famílias paralelas não são reconhecidas, isso impactará diretamente a vida das pessoas, seja quando elas deixam de receber um direito a que fazem jus, ou quando se sentem marginalizadas e estigmatizadas perante a sociedade ou até mesmo quando se sentem motivadas a não tornar público o amor que compartilha por outra pessoa que é membro em comum de outro núcleo familiar.


Por fim, cumpre mencionar que não se buscam repostas definitivas, mas apenas levantar questionamentos e causar reflexões, tudo isso sempre pautado no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana que prega que todos merecem e devem ter seus direitos respeitados, inclusive, no que tange à liberdade para escolher a forma de relacionamento que faz cada pessoa feliz e que lhe proporciona maior desenvolvimento pessoal.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALMADA, Renato de Mello. O STF e o direito previdenciário decorrente de relação concubinária. Revista Consultor Jurídico, 06 ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-06/almada-stf-direito-previdenciario-relacao-concubinaria. Acesso em: 15 jan. 2023.


BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Senado, Brasília, 1988. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 15 jan. 2023.


IBDFAM. STJ decide que é inviável o reconhecimento de união estável paralela, mesmo se iniciada antes do casamento. 22 set. 2022. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/10076/STJ+decide+que+%C3%A9+incab%C3%ADvel+o+reconhecimento+de+uni%C3%A3o+est%C3%A1vel+paralela%2C+mesmo+se+iniciada+antes+do+casamento. Acesso em 20 jan. 2023.


SFT conclui julgamento e não reconhece efeitos previdenciários às famílias simultâneas. Instituto Brasileiro de Direito de Família, Belo Horizonte, 03 ago. 2021. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8757/STF+conclui+julgamento+e+n%C3%A3o+reconhece+efeitos+previdenci%C3%A1rios+%C3%A0s+fam%C3%ADlias+simult%C3%A2neas. Acesso em: 15 jan. 2023.


SOALHEIRO, Luiza Helena Messias. Famílias simultâneas: um arranjo familiar não monogâmico. 1 reimp. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

Pâmela Ferreira da Silva. Graduada em Direito pela União Educacional do Norte e em Comunicação Social com habilitação em jornalismo pela Universidade Federal do Acre. Pós-graduada em Ciências Criminais pelo CERS. Técnica em segurança do trabalho. Advogada contratada pelo escritório Bezerra Marques Adgovados Associados. Atua nas áreas cível, trabalhista e criminal.
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