A cada novo dia, os canais de comunicação reforçam a onda de informações oriunda das magníficas (e incontroláveis) alterações propostas pela Inteligência Artificial. Todas elas, proporcionando novas formas de ver o mundo, facilitando ciclos e eliminando tantas outras atividades repetitivas e, por que não, desimportantes aos olhos do século XXI. Entretanto, em esfera trabalhista, se questiona: os laboradores vão surfar nessa onda ou serão sucumbidos por ela? E esse é só um dos desafios.
Há muito se questiona sobre a essencialidade da presença humana ao longo dos ciclos de trabalho, seja no que abrange a sua imprescindibilidade (presença), seja no que toca a necessidade de suas ações (toque humano) ao longo do processo. O que não se contesta é que a irrefreável capacidade de aprendizagem da Inteligência Artificial sucumbirá alguns postos de trabalho, dada a sua aptidão e celeridade no desempenho de atividades – por vezes, inclusive, melhorando-as. Realidade que aqui não se pretende contraditar.
Acontece que é preciso distinguir atividade de labuta. Enquanto a primeira diz respeito a certa ação desprovida de significado, a segunda – pelo menos aos olhos desta escritora – vai muito mais além. É a partir da atuação humana espontânea que o trabalho, eivado de significado, acaba por tocar as pessoas que realizam-o. Contudo, tal labuta, viva e significativa, modernamente, só se torna possível se realizada com trabalhabilidade. Isto porque possuí-la é[1]:
readaptar-se constantemente ao cenário laboral através de seus próprios predicados; é um trabalhador que se vale de sua própria vocação para o exercício de sua lida; alguém capaz de ressignificar durante todos os dias de sua vida a prática de seu trabalho, proporcionando para si (e para a sociedade) novas e melhores formas de atingir metas e resultados em toda e qualquer atividade. Ou seja, possuir trabalhabilidade é transbordar o que há de melhor através do exercício laborativo, desprovendo-se de rótulos previamente enlaçados, vez que, aos possuidores de tal virtude, a realização laboriosa fundar-se-á em um incessante descobrir novos (e melhores) caminhos a serem navegados.
Assim sendo, jamais se pode contestar a capacidade de melhora nos ciclos de atividades em decorrência da IA, mas frisa-se que a facilidade vem junto da perda de significado em operações anteriormente humanas. Todavia, isso não pode ser visto apenas sob o aspecto negativo, vez que a IA possibilitará que o trabalho humano, aquele que transforma tudo a sua volta, mapeie novos caminhos, dado que agora este trabalhador possuirá maior gestão de seu tempo, podendo desenvolver outras capacidades.
Dessa forma, através de lentes que visam mais longe, verifica-se que a Inteligência Artificial deve ser usada para possibilitar que humanos exerçam sua trabalhabilidade em prol de outras pessoas (também trabalhadoras), vez que a IA repetirá atividades desprovidas de sentido, não mais tocadas por quem é, de fato, capaz de ressignificar o labor. Verdade seja dita: Inteligência Artificial não é a inimiga, muito pelo contrário.
Aliás, embora não se trate da mesma coisa, mas tenha aproximação direta, tanto se deve desenviesar esse estigma que em 1988, quando da promulgação da Carta Constitucional brasileira, prometeu o constituinte que o Estado garantiria “proteção em face da automação” mediante lei complementar – esta que, lamentavelmente, após quase 35 anos de sua vigência, ainda não foi aprovada. De toda sorte, ainda no calor dos novos tempos que nasciam, já se tinha a intenção de preservar os trabalhadores em face dos meandros proporcionados pela evolução do mundo – e das coisas.
Em verdade, vê-se que o futuro promissor já havia sido vislumbrado pelo constituinte ainda nos idos de 1988, assim como todo o avanço tecnológico que seria possível alcançar. Então, é necessário (continuar) lançando olhos positivos às mudanças, eis que a IA pode ser (e é) ferramenta incrível para execução de atividades absolutamente passíveis de automação, tanto que os relatos já existem e a tendencia é sua continuidade. Outrossim, o toque humano, aquele que dá sentido ao corolário lógico deste “fazer”, insubstituível será.
A ordem do dia, portanto, é concentrar esforços para, junto da “malvada favorita”, reconsiderar os infinitos novos caminhos por ela possibilitados, basta ver que o tempo de lida agora será outro, as horas laboradas serão eivadas de significação, proporcionarão idealizações e, quiçá, servirão de catapultas para novas profissões. Todas elas, encorajadoras no estímulo de exercício com trabalhabilidade ao longo de seu desenvolvimento.
Enfim, escusas à IA, mas os trabalhadores que possuírem trabalhabilidade são (e serão sempre) essenciais.
[1] ALVES, Andressa Munaro. A Trabalhabilidade como direito social fundamental: O critério da ponderação como alternativa à sua realização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023. p. 139.
A AUTORA
Andressa Munaro Alves:
Doutoranda e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) - Bolsista CAPES. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Escola Superior Verbo Jurídico Educacional. Professora no Programa de Graduação em Direito nas Faculdades Integradas São Judas Tadeu. Pesquisadora e Líder de eixo do Grupo de Pesquisas “Novas Tecnologias, Processo e Relações de Trabalho” (PUCRS). Advogada. andressa.castroalvesadv@gmail.com.
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