Antes de tudo, é importante esclarecer as diferenças conceituais entre os termos ortotanásia, distanásia e eutanásia.
A eutanásia é o ato intencional de promover (antecipar) a morte de alguém que está em sofrimento em razão de doença ou enfermidade incurável. A distanásia consiste no prolongamento desnecessário da vida de um enfermo incurável através de meios artificiais e desproporcionais, que não serão capazes de promover a cura do paciente. A ortotanásia, por sua vez, consiste em um processo de morte natural, sem submeter o paciente a tratamentos inúteis, desnecessários e invasivos que somente promoverão o sofrimento do paciente nos seus momentos finais de vida.
A ortotanásia é praticada por meio dos cuidados paliativos, buscando manter a qualidade de vida do paciente e de sua família em casos de doenças incuráveis.
No Brasil, a eutanásia é ilegal, podendo ser tipificado como homicídio simples ou homicídio privilegiado, a depender da situação em que ocorreu.
O próprio Código de Ética Médica, no art. 41 veda expressamente a eutanásia, ao dizer que “é vedado ao médico: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.”
Da mesma forma, o Código de Ética Médica proíbe a distanásia, como se observa no capítulo I (Princípios fundamentais):
XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.
XXVI - A medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos melhores resultados.
Além disso, o art. 14 do próprio Código de Ética Médica prevê que ”É vedado ao médico: Art. 14. Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País”
A ortotanásia, por sua vez, é admitida pelo Código de Ética Médica, nos termos do parágrafo único do art. 41, que diz que, “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”
Todavia, ainda pairam na sociedade muitas dúvidas a respeito da ortotanásia, algumas vezes por desconhecimento, inclusive da equipe de saúde, ou por achar que ao se praticar a ortotanásia está se retirando do paciente a chance de cura da doença.
Porém, é sempre importante esclarecer que a ortotanásia é admitida somente naqueles casos em que o paciente está com doença incurável, ou seja, já há um diagnóstico definitivo que o processo da doença é irreversível. Caso ainda haja possibilidades terapêuticas para o tratamento da doença em questão, deve-se lançar mão de todos os meios terapêuticos disponíveis para a cura do paciente, de acordo com o próprio Código de Ética Médica: “É direito do médico: II - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.”
Reiterando o direito dos médicos de usar todos os meios terapêuticos disponíveis para tratar o paciente, o inciso XXVI do Código de Ética Médica diz: “A medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos melhores resultados.”
Na ortotanásia a morte é vista como um processo natural pelo qual todo ser humano passará. E por mais que a Medicina hoje disponha de modernos equipamentos para diagnóstico e tratamento, é sabido que em algumas situações aquele paciente já está em processo final de vida, pois, como dito, já está com diagnóstico definitivo de doença em fase terminal, incurável, não tendo no momento nenhuma alternativa científica para reverter o quadro clínico de saúde do enfermo.
Neste ínterim, entram em cena os cuidados paliativos. Conjunto de procedimentos médicos e hospitalares que visam promover o bem-estar do doente, melhorando sua qualidade de vida e de sua família, uma vez que o objetivo primordial dos cuidados paliativos é aliviar o sofrimento causado pela enfermidade.
Nos termos da Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina:
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, através de identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”
Dessa forma, a ortotanásia não significa abandonar o paciente simplesmente retirando as possibilidades terapêuticas. Na ortotanásia o paciente apenas não será submetido a tratamento inútil ou desnecessário. Na verdade, todo o tratamento disponibilizado ao paciente, neste momento final de vida, será para promover sua qualidade de vida, evitando quaisquer formas de sofrimento físico e/ou psíquico.
Esse é o objetivo dos cuidados paliativos, permitir que o enfermo não sofra, permitir que o enfermo possa conviver com seus familiares nos momentos finais de vida.
Para que a prática da ortotanásia e, consequentemente, dos cuidados paliativos, seja bem-sucedida é necessário o envolvimento de toda a equipe de saúde da unidade hospitalar: dos médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, dentre outros.
A morte ainda é considerada um tabu para muitas pessoas, por isso a importância de uma equipe hospitalar interdisciplinar bem treinada e consciente dos benefícios da ortotanásia e dos cuidados paliativos para o melhor bem-estar do paciente e da família. Caso o tema não seja abordado de maneira apropriada com a família e o próprio enfermo para a tomada de decisão, a chance de se optar pela distanásia é bem maior.
Além de todo o exposto, é direito do paciente decidir livremente sobre suas escolhas terapêuticas, desde que tenha sido devidamente esclarecido e informado das possibilidades terapêuticas, como manda o art. 24 do Código de Ética Médica: “É vedado ao médico:Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.”
A Resolução nº 2.232/2019 do Conselho Federal de Medicina, que estabelece normas éticas para a recusa terapêutica, diz em seu art. 1°: “A recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta Resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão.”
Como se vê, além de ser um dever do médico garantir que o paciente exerça livremente sobre sua pessoa, é eticamente permitido que o enfermo se recuse a tratamento proposto pela equipe médica.
A própria Constituição da República Federativa do Brasil diz em seu art. 5°, II, que ninguém será obrigado a fazer alguma coisa se não houver previsão em lei para tal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
A bioética, campo de estudo onde se aborda conceitos morais, éticos e legais nas tomadas de decisão envolvendo a Medicina e o Direito, apresenta quatro clássicos princípios: não-maleficência, beneficência, justiça e autonomia. O princípio da autonomia se baseia na ideia central de que a pessoa capaz e lúcida tem plena capacidade e liberdade de tomar suas próprias decisões.
Do ponto de vista constitucional, respeitar a autonomia do paciente e adotar a ortotanásia e os cuidados paliativos, promovendo o bem-estar e a qualidade de vida o enfermo, está em plena consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
Por outro lado, submeter o paciente à distanásia, prolongando seu sofrimento através de condutas inúteis e desnecessárias que não terão a capacidade de curar o paciente, além de não promover a qualidade vida, coloca o paciente em uma situação degradante, desumana, pois impede que o enfermo conviva com seus familiares nos momentos finais de sua vida, indo totalmente contrário à norma constitucional:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
A ortotanásia, como se vê, não ofende o ordenamento jurídico brasileiro, sendo uma prática lícita e ética, porém, a morte ainda é tida como um tabu na sociedade. E o desconhecimento dos conceitos de ortotanásia e dos cuidados paliativos apenas dificultam essas tomadas de decisão tanto pela equipe médica e hospitalar quanto pelo paciente e familiares.
Diego Bruno Nascimento é advogado, especialista em Direito Médico, membro da Comissão de Direito Médico da OAB/AC, Cirurgião-Dentista, especialista em Ortodontia e Odontologia legal e professor.
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