Para mim, a parte mais difícil de escrever é o começo. Nunca sei como começar um texto. Consigo pensar o meio, o desenvolvimento e o fim, mas nunca o começo, e isso é curioso e diz muito sobre mim. Acredito que parte do meu sintoma é uma pedra fundamental da forma que opero no mundo, ISSO diz respeito à minha Ética.
Para a psicanálise, sobretudo a lacaniana, a ética que rege o meu trabalho sempre será pautada na luz do inconsciente do sujeito. Ou seja, existe uma lei que nos rege, que é individual e intransferível e não é, nem nunca, será uma lei moral, e penso que é aí que o Direito e a psicanálise dançam. Não no sentido ruim, mas no sentido de como nos passos de uma dança vão conduzindo o sujeito, mais próximo ou mais longe, de seu desejo, entre rodopios e pisadas no pé, vamos aos trancos e barrancos tentando achar o compasso disso que chamamos de vida.
Pensem como uma energia ou para os mais positivistas podemos chamar de ansiedade, eu (e Freud) nomeio de pulsão, que é dentro da dinâmica do aparelho psíquico (e aqui temos que pensar não como cérebro morfofisiológico, mas como a energia do pensamento, esse elemento abstrato que chamamos de consciência) que se divide em duas energias a de vida/libido/Eros e a de morte/Thanatos.
A Eros é essa ansiedade produtiva responsável pelo laço, amor, é por essa via que construímos o pensar no outro, é o que torna tudo belo, é o que constrói, é por essa via que consigo fazer esse texto, quando estamos operados por ela, cuidamos mais de nós e dos outros e por consequência, nossos pensamentos tendem a ser mais agregadores, coletivos.
Já Thanatos é a destruição, o que devasta, é aquele pensamento que pode ser pela via da destruição do outro. Muito comum que a gente pense em violência com o outro, que outro merece sofre e até mesmo morrer, ou a nós mesmos quando paramos de nos cuidar, nos mutilamos ou nos submetemos à situações que nos machucam fisicamente e psicologicamente, geralmente marcado de angustias, sofrimento, não aceitação e indignação.
Essas forças psíquicas não operam de forma distinta, mas juntas e misturadas, e podem sim se fundir e formar algo. Penso que a fusão das duas gera o que chamamos de culpa, mas isso ficará para outro momento, pois o objetivo desse texto é outro, mas uma coisa é certa, por sermos comandados pela via do amor e morte, afirmo que podemos pensar tudo. O pensamento é livre, todavia, nem todo ato nos convém.
Outro conceito que talvez seja importante dizer aqui é o conceito da castração, que durante a nossa formação precisa ser inscrito como o nome-do-pai, que é a lei simbólica que impede que a mãe engula seu bebê, essa lei impõe limite na mãe para que ela tenha uma barreira entre o corpo dela e do bebê, e também ao bebê.
Sem isso não existirá o que chamamos de supereu/superego, essa vozinha que tem na nossa cabeça que nos impede de falar e agir de qualquer jeito com medo de ser punido ou julgado pelo outro, e o nosso superego é influenciado diretamente por aquilo que nos foi apresentado e nomeado no que chamamos de certo e errado, pela religião, cultura e comunidade em que vivemos. Em outras palavras, é a lente pela qual vemos o mundo ou também podemos chamá-la de moral.
E quando a pulsão de morte ultrapassa o corpo e não é mediada ou quando o superego está fundamentado em uma moral excludente, ela se materializa em ato pela via da palavra ou nas atitudes homofóbicas, xenofóbicas, preconceituosas, nos permite classificar outro humano como merecedor ou não, valoroso ou não, quem tem direito ou não.
Vejo o Direito como uma suplência de uma amarração social necessária, com seu conjunto de normas morais que regulam a nossa vida quotidiana fazendo com que a pulsão de morte individual não nos dizime por completo dentro da nossa pequinês demasiadamente humana.
Vivemos hoje um momento quase distópico onde temos que reforçar e nomear a justiça, pois as distorções da linguagem e suas interpretações fazem com que algo simples como o direito de liberdade de expressão não seja confundido com ataque ao direito do outro de viver ou cerceie o direito de ir e vir das pessoas, onde a minoria deva se curvar à maioria.
Discursos assim abrem uma porta dentro da gente que somente a via do amor, que somente a queda da ignorância que temos sobre nós mesmos pode tocar aquela sabedoria desnuda, sem máscara. Ter noção até onde nossa pulsão de morte pode chegar para que possamos colocar borda e limite. Sem dimensão disso eu combato violência com violência, viro justiceiro, me coloco acima de tudo e de todos, sou ideal e não mais real.
Pendo que por essas questões éticas e morais que a psicanálise e o Direito estão sempre enlaçados, tentando fazer borda dentro do corpo e fora dele na Pólis e é graças ao Direito que a violência contra a mulher encontra barreira, o racismo encontra barreira, a homofobia encontra barreira. O Direito é o superego da Pólis.
Talita Mortari Montysuma Leite. Bacharel em Psicologia com ênfase clínica pela Faculdade Barão do Rio Branco (2016) Psicanalista. Foi secretária executiva do Conselho Estadual de Saúde (2017/2020), atua como psicóloga Clínica Membro do Fórum do Campo Lacaniano/Belém cronista do jornal virtual acreaovio. Atualmente é docente do Centro Universitário UNINOTE e da Faculdade UNAMA.
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