De início, vejamos um caso totalmente fictício (qualquer semelhança será mera coincidência).
Antônio e Joaquim eram amigos de longa data. Um certo dia, numa rotineira conversa de botequim, tiveram a ideia de iniciar uma empresa juntos. Tratava-se de um negócio inovador, e com excelentes chances de sucesso. O plano parecia perfeito: cada um contribuiria com metade do capital inicial, metade dos investimentos necessários para início da atividade, e dividiriam os resultados proporcionalmente. E assim, procuraram um contador, o qual lhes apresentou um modelo de contrato social, constituíram uma empresa na modalidade limitada, e iniciaram seu negócio.
Nos primeiros anos o negócio prosperou como combinado. Os resultados foram divididos como combinado, e Antônio e Joaquim ficaram felizes com o sucesso da empresa que construíram. A amizade seguia firme.
Um belo dia, Joaquim resolveu investir parte dos resultados advindos da empresa na qual era sócio com Antônio em um outro negócio, particular. Este outro negócio também prosperou, e começou a exigir cada vez mais dedicação de Joaquim, o qual acabou dedicando-se cada vez menos à sociedade com Antônio, deixando sua condução totalmente a cargo deste. Antônio, por sua vez, sentiu incômodo pela ausência de Joaquim, exigindo-lhe igual contrapartida na sociedade, já que percebia metade dos resultados. Insatisfeito pelas cobranças de Antônio, Joaquim exigiu-lhe prestação de contas da sociedade, levantando suspeitas de sua gestão. A amizade foi abalada.
Como o seu negócio particular estava bastante alavancado, e pensando em preservar a amizade com Antônio, Joaquim propôs sua retirada da sociedade, apresentando uma proposta de recebimento de seus haveres que julgou adequada. Ao receber a proposta, Antônio ficou indignado, afinal, há tempos Joaquim não participava ativamente do negócio. Era pretensioso de sua parte querer receber tanto por um negócio que, de fato, já não participava.
Como não chegaram a um consenso, acabaram iniciando uma disputa judicial em torno da dissolução da empresa. O processo se arrastou por anos, sem mesmo ter uma sentença. Cansados da disputa, Antônio e Joaquim acabaram vendendo a empresa que constituíram por um preço bem abaixo de seu real valor. O processo acabou com este acordo de venda. A sociedade e a amizade também acabaram.
Este caso, como dito, é fictício. Mas, guarda total semelhança com milhões de histórias escritas ao longo dos anos, no âmbito do direito empresarial por todo o Brasil. Histórias que ainda hoje são repetidas, com pequenas mudanças de contexto e personagens, mas quase sempre com o mesmo trágico fim: litígios judiciais encerrando não apenas sociedades sólidas, mas relacionamentos antigos e vínculos considerados fortes (amigos, irmãos, pais e filhos).
Os dados de distribuição de processos coletados pelo programa “Justiça em Números”, entre os anos de 2016 e 2018, do Conselho Nacional de Justiça, revelam que a quantidade de ajuizamento de ações novas que versam sobre matéria empresarial cresceu consideravelmente, especialmente nos estados de São Paulo (de 20.452 em 2016 para 37.540 em 2018) e do Rio de Janeiro (de 6.114 em 2016 para 18.537 em 2018), que concentram a maior parte das empresas do Brasil.
E o ponto mais sensível desta tragédia repetida é que, na maioria absoluta das vezes, o Poder Judiciário não dispõe de meios eficazes de solucionar as demandas desta natureza, acabando em verdade, por colocar a última pá de cal sobre a sepultura societária. Aliás, vige no Brasil o chamado Princípio da Intervenção Mínima[1], segundo o qual as regras estabelecidas pelo contrato social (desde que de acordo com a lei vigente) não podem ser ignoradas pelos sócios da empresa e tampouco pelo Poder Judiciário, posto que se presume que estas (regras sociais) exprimem (ou deveriam exprimir) um consenso sob o qual os sócios concordam estabelecer convivência, instituindo suas regras e sua estrutura institucional. Nesse contexto, justamente, uma decisão judicial não deve interferir ilimitadamente em uma empresa para mudar o que foi contratado e acordado entre as partes, podendo ser reputado como excessivo ou até mesmo abusivo qualquer ato judicial que extrapole esse escopo.
O que se percebe, a partir deste contexto, é que o verdadeiro óbice à mitigação de conflitos societários repousa na insuficiência (ou inexistência) de regras sociais verdadeiramente claras, e que contemplem – como entende o Judiciário Brasileiro – o verdadeiro consenso sob o qual os sócios concordam estabelecer a convivência societária empresarial.
Isto ocorre, justamente, porque a intervenção mínima baseia-se nas ideias de proporcionalidade e razoabilidade para interferência na esfera privada e de soberania da vontade dos sócios, positivada pelos artigos 1.071, do Código Civil, que lhes atribui o dever de gestão, decisão e deliberação dos negócios sociais. Assim, se os sócios não se desincumbem deste mister, quando da constituição da empresa por meio do contrato social, nem mesmo o Poder Judiciário poderá lhes socorrer, quando em conflito.
Ora, se voltarmos a ler, no início deste texto, a história dos sócios Antônio e Joaquim, veremos que lhes faltou um ajuste real sobre as regras de convivência, gestão e dissolução societária. É o que ocorre em quase todos os casos de conflitos empresariais: o início da relação societária foi oficializado por meio de um contrato social incompleto, que serviu apenas às exigências legais, mas não expressou a real intenção dos sócios.
No Brasil, a maioria das sociedades empresárias está organizada sob a forma de sociedade limitada (assim denominada pelo Código Civil) ou sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Para constituição deste tipo de sociedade, os sócios necessitam celebrar um contrato social, que mencionará as indicações do artigo 997 do Código Civil, devendo conter, no mínimo, os seguintes elementos: (I) nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais, e a firma ou a denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas; (II) denominação, objeto, sede e prazo da sociedade; (III) capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária; (IV) a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la; (V) as prestações a que se obriga o sócio, cuja contribuição consista em serviços; (VI) as pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade, e seus poderes e atribuições; (VII) a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas; e (VIII) se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais.
Como se vê, são oito exigências legais (para este tipo de sociedade), dentre as quais não estão previstos maiores detalhes quanto ao espírito dos sócios, quando da constituição societária. Ou seja, se os sócios constituem uma sociedade sob um contrato social totalmente alinhado com o Código Civil, ainda assim poderão ter deixado de formalizar detalhes que, no futuro, poderão causar conflitos sérios, capazes até mesmo de levar a sociedade à bancarrota.
É nesta lacuna legal (permita-nos assim considerar) que entra o instrumento denominado acordo de sócios. O acordo de sócios[2], ou de acionistas, no caso das sociedades anônimas é um documento parassocial, que será arquivado em livros próprios da sociedade e que vincula apenas os sócios e não a sociedade em si, e que tem como objetivo conectar as partes signatárias na composição de interesses comuns.
Segundo nos ensina a doutrina, trata-se de um contrato submetido às normas comuns de validade e eficácia de todo o negócio jurídico privado, concluído entre acionistas de uma mesma companhia, tendo por objeto a regulação do exercício dos direitos referentes as suas ações, tanto no que concerne ao controle como ao voto dos minoritários ou, ainda, a negociabilidade dessas ações. Tais acordos visam a composição dos interesses dos acionistas com respeito ao exercício de seus direitos políticos, junto a companhia, e patrimoniais sobre suas ações.
Juridicamente classificado como “contrato parassocial”, o acordo de sócios, que em determinados casos recebe o nome de “acordo de quotistas” ou “acordo de acionistas”, vem ganhando relevância na medida em que cuida de temas não obrigatórios no “contrato social”, ajudando a evitar o abuso de poder de quem tenha sido designado para o controle da sociedade, a estabelecer as hipóteses e as condições para entrada ou saída de sócios, e a mitigar os riscos de morte prematura da empresa, dentre outras questões.
Apesar de não restringir direitos individuais e essenciais disponíveis, o acordo de sócios vincula herdeiros e sucessores nas obrigações de caráter convencional (de controle ou de voto) e patrimonial (de preferência e opção). Por meio do acordo de sócios, é possível criar regras claras que melhorem a governança corporativa da empresa.
Referido acordo, se realizado pela unanimidade ou mesmo maioria dos quotistas, possui grande valia quando seu objetivo seja regular interesses particulares dos acordantes, perfeitamente lícitas, mas cuja menção no contrato social revela-se incompatível com a natureza deste ou com o sigilo comercial.
Dentre as regras que podem constar do acordo de sócios, podemos mencionar:
a) A gestão das operações, estabelecendo política de governança corporativa – um sócio possui direitos de sócio, mas não necessariamente deve participar da gestão do negócio (apenas por ser sócio);
b) As condições para que um sócio possa ocupar a diretoria da empresa, e os critérios a observar após a posse – um sócio pode dirigir os negócios, mas os sócios podem escolher, dentro de critérios técnicos, um gestor profissional;
c) Quóruns para deliberações sociais – os sócios devem participar de decisões importantes, mas sem engessar os negócios, que devem ser operados pelo seu gestor, dentro de limites estabelecidos. Os quóruns de deliberação aplicáveis são previstos nas legislações de cada modelo societário, entretanto, através do acordo de sócios ou acionistas, poderão os sócios dispor acerca de quórum diferenciado para determinadas matérias, inclusive vinculando o voto de fundadores e investidores como obrigatórios em questões estratégicas do negócio;
d) O exercício do direito de preferência na compra e venda de quotas de titularidade dos sócios no capital social da empresa, bem como de bens pertencentes ao seu ativo – o direito de preferência aos sócios para aquisição de participação societária, em relação a terceiros, está previsto no Código Civil para as sociedades limitadas. Entretanto, para o caso das sociedades anônimas não há previsão legal, de modo que o acordo de acionistas poderá dispor acerca das condições e prazos que deverão ser observados pelos acionistas. Importante ressaltar que a ausência de previsão neste sentido coloca os sócios expostos ao ingresso na sociedade de terceiro estranho, sem que lhes seja dada a possibilidade de aquisição das ações;
e) Tag Along (direito de venda conjunta) – cláusula que usualmente possibilita aos sócios minoritários exercerem o seu direito de retirada da sociedade pelas mesmas condições conferidas a terceiro adquirente e que ingressa no negócio. Trata-se de mecanismo de proteção a acionistas que não desejam conviver com novos acionistas, com os quais não se identifiquem e possam entrar em conflito na tomada de decisões;
f) Drag Along (obrigação de venda conjunta) – neste caso a cláusula tem como enfoque a proteção do sócio majoritário (controlador), que ao receber proposta de investimento, exige a venda não somente de sua participação, mas também de sócios minoritários, pelas mesmas condições ou por preço mínimo a ser ajustado, na hipótese de o investidor não ter o interesse em participar do negócio caso os minoritários integrem o quadro societário, por exemplo.;
g) Valuation – definição acerca do justo valor do negócio. Os sócios poderão dispor acerca dos critérios e métodos de avaliação da sociedade, o que é fundamental para situações de saída de sócios, venda, aquisição e participação societária e que podem gerar algum tipo de conflito no futuro.
O acordo de sócios será elaborado conforme os interesses dos sócios. Por isso, além das matérias acima mencionadas (por amostra), há outras possibilidades que o documento poderá prever, tais como regras que disciplinem a saída de um sócio através de retirada unilateral ou falecimento, regras de ingresso de novos sócios, aumento de capital, critérios de resolução de conflitos, forma de distribuição de lucros, dentre outros temas que possam ser de interesse social.
Como se vê, há muitas cláusulas fundamentais para a efetiva expressão da vontade nos sócios e que, ainda que não sejam legalmente obrigatórias no contrato social, se mostram indispensáveis à pacificação das relações societárias, e devem ser expressas num acordo parassocial.
A elaboração desse tipo de documento demonstra, ainda, uma maior maturidade e transparência da relação societária, fator que no momento de avaliação do negócio por um potencial investidor pode ser levado em consideração.
Antes de iniciar uma sociedade, não deixe de expor ao seu potencial sócio todas as suas expectativas quanto ao negócio. Combine tudo, nos mais aparentemente insignificantes detalhes. E, o mais importante, formalize todo os “combinados” quando a relação entre vocês (sócios) é harmônica e estável, pois no momento de crise, a tendência é que o acordo para resolução dos conflitos seja mais difícil.
Vale a pena investir um pouco mais de tempo em cuidados jurídicos que viabilizam o negócio no futuro. O acordo de sócios é, sem dúvidas, o instrumento parassocial de pacificação societária.
Gilliard Nobre Rocha é advogado com 16 anos de experiência em direito empresarial e sólida atuação em conflitos societários. Mestrando em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa. MBA em Gestão Empresarial (FGV). Especialista em Auditoria Fiscal e Tributária (UCAM). Secretário-Geral Adjunto da OAB/ACRE. CEO Nobre Rocha Advogados.
gilliard@nobrerocha.adv.br
[1] É pelo princípio da intervenção mínima que se garante a autonomia da vontade dos sócios nas deliberações sociais, especialmente as que dispõem sobre objeto e fins da sociedade e formas de administração, conforme precedentes do próprio STJ: “a atuação do Poder Judiciário em causas que versem sobre a administração das sociedades deve pautar-se sempre por critério de intervenção mínima. A Lei permite o afastamento de sócio majoritário da administração da sociedade, mas isso não implica que ele perca os poderes inerentes à sua condição de sócio, entre os quais está o poder de nomear administrador (MC 14.561, Min. Nancy Andrighi, DJ 08/10/2008). [2] Este instrumento é originalmente concebido como acordo de acionistas, conforme previsto pelo art. 118, da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas). Em relação às Sociedades Limitadas, o novo Código Civil espantou as dúvidas até então existentes sobre a possibilidade de existência do chamado “acordo de quotistas”, espelhado no acordo de acionistas, previsto na Lei n. 6.404/76, prevendo a possibilidade da existência de “pacto separado” entre os sócios de uma sociedade limitada, ficando sua eficácia perante terceiros condicionada ao fato de não dispor contrariamente ao contrato.