A violência doméstica ocorre desde o início da história e a cultura machista é, sem dúvidas, a grande causa do desacerto humano nesseponto.
Durante a Idade Média, a discriminação contra a mulher foi a mais cruel, mulheres eram queimadas sendo acusadas de bruxaria, quando na verdade eram nada mais que mulheres tentando ocupar espaço e respeito na sociedade, nesta época, para cada dez bruxas queimadas na fogueira da Inquisição, um bruxo era queimado.
Ponto mais recente na linha do tempo, demonstra que com a criação do Código Civil de 1916, foi instituído que a mulher deveria ter autorização do marido para trabalhar, com o objetivo de proteger a família.
A mulher durante toda a história, com exceção em algumas civilizações, era reconhecida como propriedade do homem. Atualmente muitos homens ainda com ideias retrógradas têm este entendimento, impedindo o desenvolvimento intelectual, independência financeira e liberdade da mulher, violando muitas vezes direitos fundamentais garantidos a todo ser humano como a igualdade, a liberdade e a vida.
Com o isolamento social devido à pandemia COVID-19, o número de casos de violência doméstica denunciados aumentou consideravelmente, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). No ano de 2020 este aumento foi de 50% se comparado ao mesmo período de 2019 e os casos de feminicídio no Brasil cresceram 22,2%, entre março e abril de 2020, em 12 estados do país, comparativamente ao ano de 2019.
Este considerável aumento se dá pelas condições enfrentadas devido à pandemia. A instabilidade emocional - devido à redução da capacidade financeira gerada pelo aumento do desemprego; o aumento excessivo do consumo de álcool e de outras drogas pelos agressores; a permanência constante no mesmo ambiente que a vítima; bem como a vulnerabilidade desta quando afastada da família e do seu núcleo social devido ao isolamento são fatores que potencializam a agressividade e o poder de controle sobre a vítima.
Por conta disso, vários projetos e ações foram desenvolvidos visando a proteção da mulher em tempos de pandemia. O Projeto Advogada com Propósito, que leva informações sobre violência contra a mulher e os direitos das mulheres, desenvolveu a Cartilha Prática dos Direitos das Mulheres - https://linktr.ee/AdvogadacomProposito – que explica de forma didática as várias questões que envolvem a violência contra a mulher, como o ciclo da violência, os tipos de violência e também os canais para buscar ajuda e o Projeto Justiceiras idealizado pela Promotora de Justiça Gabriela Manssur, desenvolvido com a união dos esforços do Instituto Justiça de Saia, Instituto Nelson Willians e Instituto Bem Querer Mulher, que visa, por meio do Whatsapp (11) 996391212, prestar auxílio psicológico, jurídico e de assistência social para as mulheres vítimas de violência, são exemplos do engajamento da sociedade em defesa da mulher vítima de violência doméstica.
O Poder legislativo também se esforçou visando aumentar a proteção da mulher. Exemplo disso é a Lei 14.022 de 07 de julho de 2020 que alterou a Lei 13.979 de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
A referida Lei garante a não suspensão de prazos processuais relacionados à violência doméstica, o registro de boletim de ocorrência online ou por telefone de emergência e adoção de medidas necessárias para atendimento presencial.
Quanto à adoção de medidas necessárias para o atendimento presencial, a Lei 14.022/2020 enfatiza a obrigatoriedade em alguns crimes previstos no Código Penal, como feminicídio (inciso VI do § 2º do art. 121), lesão corporal (art. 129), ameaça praticada com arma de fogo (Art. 147), estupro (Art. 213 e caput e nos §§ 1º, 2º, 3º e 4º do art. 217-A), entre outros. Assim como também nos crimes previstos na Lei Maria da Penha, como o descumprimento de medidas protetivas de urgência (art. 24-A), além do Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto do Idoso, tudo conforme parágrafo 2º do artigo 3º da referida Lei.
Nos caso de crimes de violência sexual, a Lei 14.022/2020 garante a realização prioritária do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher e violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência, possibilitando ainda exame de corpo de delito no local em que se encontrar a vítima, se houver a adoção de medidas pelo poder público que restrinjam a circulação de pessoas.
A alteração da Lei 13.979/2020 pela Lei 14.022/2020 foi de extrema necessidade, para assegurar maior proteção às mulheres, mas de nada adianta a Lei se o sistema não funciona, se existem falhas desde o atendimento inicial da vítima.
Ainda nos dias atuais, mulheres que sofrem violência e buscam a delegacia são aconselhadas a não fazer o boletim de ocorrência, ou quando fazem são obrigadas a voltar para a casa onde se encontra o agressor porque sua cidade não dispõe de casa abrigo para seu acolhimento. Além disso, em centenas de municípios faltam delegacias especializadas e, quando tem, não existem funcionários suficientes e preparados para dar conta da demanda.
As dificuldades enfrentadas pela mulher vítima de violência não se restringem aos problemas acima identificados.
O problema da violência contra a mulher vai muito além da lavratura do boletim de ocorrência e da obtenção da medida protetiva, e por isso é importantíssimo o olhar do poder público para as deficiências existentes no sistema, desde o atendimento à vítima até a implantação de locais de acolhimento com a estrita vigilância do correto funcionamento destes lugares, incluindo atendimento humanizado e eficiente.
A Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, protege a mulher de mais um desgaste após tanto sofrimento. O artigo 9º da referida Lei prevê que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
Ainda, o parágrafo 2º do mesmo artigo prevê que o Juiz determinará a manutenção do vínculo trabalhista e assim, quando necessário, o afastamento do local de trabalho por até seis meses.
Entretanto, infelizmente, a maioria das empresas desconhecem essas regras e tomam decisões tão somente baseadas nas questões financeiras - custo x benefício, esquecendo do papel social que deveria ser intrínseco nos valores de qualquer empresa.
Numa época em que a Organização das Nações Unidas (ONU) discute cota de 30% dos cargos de lideranças para mulheres - O Pacto Global, movimento Equidade é Prioridade, e em que há Projeto de Lei em votação estabelecendo cota de 5% para mulheres vítimas de violência- PL5548/2019, não pensar em minimizar a dor de uma mulher nesta situação é perder qualquer senso de humanidade, uma vez que a garantia de emprego à mulher vítima de violência, prevista na Lei Maria da Penha, contempla maior garantia constitucional, bem como vai de encontro à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Não obstante, nos deparamos com outro problema gigantesco neste contexto: Como a mulher vítima de violência, que em sua maioria dependem financeiramente dos seus algozes, conseguem se sustentar e sustentar seus filhos?
Não há, por enquanto, lei que responsabilize a Seguridade Social a fornecer auxílio às vítimas de violência em situação de vulnerabilidade. O Projeto de Lei 3.256/2012, que trata desse tema, está sem andamento desde 2017, aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), mesmo tendo parecer favorável pela relatoria anterior.
E o pior, apenas 2,7% das cidades brasileiras possuem casas abrigo voltadas para o atendimento das mulheres vítimas de violência, ou seja, a mulher sai do ciclo de violência, mas não consegue sair da condição de vulnerabilidade, muitas vezes restando a ela voltar para o agressor, único que, muitas vezes, apesar de tudo, lhe concede abrigo e alimento, bem como aos seus filhos.
Instituir medida que assegure à mulher e seus filhos em situação de vulnerabilidade condições mínimas de subsistência é o mínimo a ser feito pelo Poder Público, pois, é direito personalíssimo da mulher vítima de violência doméstica e familiar gozar dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, estabelecidos na nossa Magna Carta, a Constituição Federal de 1988.
Como se vê, o combate à violência contra a mulher é uma causa urgente que deve ser abraçada por toda a sociedade, exigindo maior envolvimento do Poder Executivo na busca da devida aplicação das Leis que disciplinam o tema, pois somente quando as diretrizes da legislação forem atendidas e implementadas com efetividade nas diversas estruturas de atendimento da rede de proteção à mulher, teremos a esperança de reverter esse atual cenário alarmante e devastador que nos faz perder milhares de mulheres por ano vítima de violência de gênero.
Mayra Vieira Dias é advogada, sócia do escritório Calazans e Vieira
Dias, ativista no combate à violência contra a mulher, idealizadora do projeto.
Advogada com Propósito, Líder local do Projeto Justiceiras e membro do
Grupo Mulheres do Brasil.
Excelente abordagem. De fato é uma causa à ser abraçada por todos