Leitor, de antemão, sugiro que leia este artigo também pela versão em PDF da revista, considerando que por lá a diagramação (apresentação visual) da petição entregue pela IA está mais parecida com o que os advogados estão habituados.
O que vou compartilhar aqui é somente a ponta de algo enorme que está por vir, na realidade, que já virou a curva da esquina.
Esse experimento feito em um caso real de uma petição inicial para um processo judicial é o exemplo de uma das mais de 13 formas que a inteligência artificial já pode auxiliar os operadores do Direito em suas demandas.
Vamos lá.
Em uma ensolarada sexta-feira antes do carnaval, 17 de fevereiro de 2023, tive o prazer de, empolgadamente, protocolar aquela que muito provavelmente é a primeira petição inicial escrita completamente por uma inteligência artificial (IA) enviada ao Judiciário acreano.
Sim, eu tenho noção de que esse é um assunto espinhoso para as classes juristas. Há anos somos assombrados pelo debate filosófico sobre a possibilidade de um dia os magistrados e os advogados serem substituídos por uma inteligência artificial.
Aos poucos esse debate sobre o futuro vai se materializando cada vez mais. Os Estados Unidos já testam um “robô” baseado em IA com atuação como assistente de advogados e, pelos relatos que leio, tem se saído bem na função.
Aqui pelo Brasil, o Judiciário em seus mais diversos níveis e competências territoriais e materiais já vem desenvolvendo soluções próprias para auxiliar na demanda dos órgãos jurisdicionais, geralmente com foco no suporte às varas para ganhar celeridade. Mas não vamos neste texto adentrar nessas soluções.
Então, vamos falar sobre o que foi feito aqui no Acre.
Eu aproveitei que a Oi negativou meu nome de maneira aparentemente indevida (para ser ético na minha expressão) e resolvi utilizar a tecnologia do ChatGPT, que já venho testando com desafios em diversas demandas jurídicas.
Preliminarmente, deixe-me mencionar que minha condição atual é de advogado licenciado devido ao fato de eu ocupar um cargo no Ministério Público do Estado do Acre, o que me gera impedimento para a advocacia, então a minha capacidade postulatória de advogado está igualmente suspensa enquanto durar o meu licenciamento. Essa conjuntura me fez ter a ideia de pegar essa negativação aparentemente indevida do meu nome e experimentar a inteligência artificial no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis (JECs).
Fiz a escolha pelos Juizados Especiais por duas razões, além da acima mencionada: a primeira é porque pelos Juizados todo cidadão tem capacidade postulatória em primeiro grau, assim eu evito pedir a algum colega advogado para protocolar na Justiça Comum e ele acabar mal falado pelo Judiciário e pela própria classe da advocacia por usar IA em uma petição, já que é algo tão novo e polêmico; a segunda é justamente pela natureza acessível dos JECs e da IA, que juntos tendem a auxiliar ainda mais o cidadão na resolução de seus problemas jurídicos.
Com os testes e desafios que tenho feito ao ChatpGPT eu percebi que ele é muito capaz de auxiliar o jurisdicionado sem conhecimento jurídico a entender o seu processo, então, pela minha lógica, ele poderia ajudar ao cidadão a criar uma petição inicial mais adequada para mover uma ação com sua capacidade postulatória nos JECs.
Sim, a petição inicial nos referidos Juizados pode ser feita verbalmente perante o servidor do Judiciário, que em seguida irá reduzi-la a termo e pegar a assinatura do autor. Mas, por que não dar ainda mais poder e liberdade de atuação ao jurisdicionado, colocando ao seu alcance uma atuação ainda mais técnica de maneira que ele compreenda e esteja no controle?
Ou seja, os Juizados Especiais são um dos dois ambientes perfeitos para a aplicação inicial da inteligência artificial como forma de suporte ao cidadão, o outro seria a Justiça do Trabalho por possuir características em comum.
Mas como eu fiz isso? Não foi nada difícil, eu escrevi um texto de 10 linhas (que fiz constar ao final deste artigo) relatando o meu problema com a Oi me esforçando para escrever como alguém que não tem conhecimento jurídico, ou seja, não informei nenhum dispositivo legal, nenhum artigo, nenhuma lei e não mencionei nenhum direito. Apenas coloquei os fatos de maneira resumida.
Juntamente aos fatos, passei instruções, pedindo – obviamente – que ela escrevesse uma petição inicial para o Juizado especial de Rio Branco e pedi que ela colocasse alguns artigos de lei (a serem definidos por ela mesma) que falem sobre o caso ocorrido. Informei que eu iria entrar sem intermédio de advogado e que não conheço os dados da Oi para colocar no processo – exceto pelo CNPJ, pois consta no print da restrição junto ao Serasa – solicitando que ela pedisse ao Judiciário para encontrar esses dados. Por fim, passei meus dados pessoais.
O ChatGPT escreveu a petição para mim em menos de 2 minutos, seguindo toda a estrutura comum de uma peça inicial, inseriu os dispositivos legais pertinentes sobre o caso, fazendo relação com o Código de Defesa do Consumidor e com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – reforço que eu não mencionei essas legislações nas minhas instruções – bem como criou pedidos coerentes com o caso (eu apenas havia mencionado o pedido de R$ 10.000,00 por danos morais).
O QUE PUDE PERCEBER
Repito, a minha intenção não era somente resolver o meu problema jurídico com a Oi, mas aproveitar essa situação para ver como a inteligência artificial no estado atual da arte se comportaria em um trabalho como esse.
Também estou analisando como o Judiciário irá receber e tratar uma petição inicial escrita por uma inteligência não humana. Inclusive uma das poucas coisas que fiz foi colocar logo abaixo do endereçamento o aviso “Esta petição foi escrita com o auxílio da inteligência artificial ChatGPT”, fiz isso para demonstrar transparência e para criar interesse dos destinatários.
Aproveitando que mencionei uma intervenção minha na petição, preciso mencionar os entraves que encontrei.
O primeiro, por se tratar de uma inteligência artificial com grande foco no conteúdo semântico, a cada pedido, por mais que se repita exatamente o mesmo, ela escreverá de uma maneira diferente. Mas, nesse caso, o usuário pode realizar algumas vezes o mesmo pedido e ver a redação que mais lhe agrada. Também é possível, após ela entregar uma redação como resposta, pedir (em continuidade no mesmo chat) que ela mantenha a redação mas acrescente, retire ou altere algo.
Atualização: O erro que relato abaixo parece ter sido temporal, ou seja, apenas decorrente de instabilidade no dia em que essa petição especificamente estava sendo feita. Em dias posteriores refiz os mesmos passos e a IA não demonstrou a mesma falha, conseguiu concluir a redação (longa) sem problemas, entregando até o final da petição.
O segundo: me parece que o ChatGPT tem dificuldade em lidar com respostas muito longas. Então por diversas vezes ele interrompeu a geração de uma resposta que seria realmente longa como uma redação, ficando esta incompleta. No caso da redação que usei por final, o ChatGPT parou a redação no meio do último pedido, então o que precisei fazer manualmente foi terminar de escrever esse último pedido e colocar a assinatura ao final. A parte da assinatura não é nenhum mistério para os usuários leigos no Direito, já que é basicamente colocar seu nome, local e data, como se faz em qualquer carta ou e-mail.
Essas são limitações naturais de uma IA em desenvolvimento, principalmente se considerarmos que ela não é especializada nas funções jurídicas.
É claro que a petição por ela entregue pode ser melhorada. Eu mesmo, como advogado licenciado, analisei alguns pontos que poderiam ficar melhores. Mas não se pode esquecer que o intuito neste momento é ver como ela pode auxiliar o cidadão leigo no Direito, por esse motivo eu não fiz modificações em sua criação, nem mesmo para inserir argumentos ou dispositivos legais não trazidos por ela. Ao fim, ela se saiu muito bem, principalmente ao inserir os dispositivos legais condizentes e os pedidos necessários além dos já informados.
O que concluo nesse momento é que o estado atual da IA representado pela tecnologia do ChatGPT pode auxiliar o cidadão no exercício mais eficiente do seu direito de acesso pleno à Justiça. Isso pode se dar através do acesso pelos Juizados Especiais Cíveis e também com o auxílio que o chat pode dar ao cidadão para compreender determinações judiciais que são originalmente expressas por redação complexa e com muito juridiquês.
Trata-se de verdadeira efetivação do direito constitucional de acesso pleno ao Judiciário nos tempos atuais em que a jurisdição é cada vez mais afetada pela evolução tecnológica que galga enormes avanços realizados em ritmo de progressão geométrica.
Vou continuar acompanhando e analisando o desenvolvimento desse processo em tela e também realizando mais testes, além dos diversos que já realizei, de aplicação jurídica do ChatGPT.
Abaixo disponibilizei primeiro as instruções que inseri no ChatGPT com os dados do caso e em seguida a petição que a IA me entregou. Observe que o objetivo desse teste foi ver como a tecnologia poderia atuar ao ajudar um leigo no Direito, por isso não fiz nenhum acréscimo no mérito ou nos aspectos legais da petição.
Contudo, se ela pode fazer esse trabalho para alguém que não entende de Direito, imagina como ela já consegue ajudar os operadores do Direito, em especial os advogados.
INSTRUÇÕES E DADOS INSERIDOS NO CHATGPT
“Quero que você escreva uma petição inicial para o Juizado especial de Rio Branco, Acre colocando alguns artigos de lei que falem sobre o caso ocorrido. No caso, a empresa Oi/SA (CNPJ 76.535.764/0001-43) negativou no SERASA o nome de Leonardo Fontes Vasconcelos indevidamente. Ela está cobrando o valor de R$ 324,74, mas ele nunca teve nenhum contrato com a Oi.
Além disso, a OI realizou a cobrança indevida também via Whatsapp usando um chat robô. Com isso o autor não pôde conversar com um humano para resolver o problema.
Por tudo isso, o autor faz o pedido de danos morais no valor de R$ 10.000,00 pela negativação indevida, pela cobrança sem dar oportunidade de negociar e pela Oi ter os dados pessoais dele sem sua autorização.
O autor vai entrar com a ação sem intermédio de advogado.
O autor não conhece os dados da Oi/AS para colocar no processo, pede que o Judiciário encontre esses dados.
Os dados do autor são: Leonardo Fontes Vasconcelos. Brasileiro. Em relação de união estável. Servidor público. CPF de número 021.161.355-08. RG de número 1065295-7. Telefone com Whatsapp 68 992380093. E-mail leonardofontesvasconcelos@gmail.com. Mora na Travessa das Flores, SN, residencial Ilha de Paraty, apartamento 204, bairro Isaura Parente, CEP 69.918-318, cidade de Rio Branco, Estado do Acre.”
PETIÇÃO ENTREGUE PELA IA (COM MINHAS ALTERAÇÕES QUE MENCIONEI NO ARTIGO)
“AO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DA COMARCA DE RIO BRANCO, ESTADO DO ACRE.
Esta petição foi escrita com o auxílio da inteligência artificial ChatGPT.
LEONARDO FONTES VASCONCELOS, brasileiro, em união estável, servidor público, portador do CPF de número 021.161.355-08, e do RG de número 1065295-7 SSP/AC, residente e domiciliado na Travessa das Flores, SN, residencial Ilha de Paraty, apartamento 204, bairro Isaura Parente, CEP 69.918-318, cidade de Rio Branco, Estado do Acre, telefone com Whatsapp 68 992380093 e e-mail leonardofontesvasconcelos@gmail.com, vem, sem intermédio de advogado, propor a presente AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS em face de OI/SA, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o número 76.535.764/0001-43, com endereço desconhecido, pelos seguintes fatos e fundamentos:
I - DOS FATOS
A empresa OI/SA, sem qualquer justificativa, negativou o nome do autor no SERASA, alegando a existência de uma dívida no valor de R$ 324,74 (trezentos e vinte e quatro reais e setenta e quatro centavos), porém, o autor nunca celebrou contrato de prestação de serviços com a mencionada empresa.
Ademais, a empresa OI/SA, também realizou cobranças indevidas através de chatbot via Whatsapp, impedindo o contato com um atendente humano para a solução do problema.
Destaca-se, ainda, que a OI/SA teve acesso aos dados pessoais do autor sem a devida autorização, o que configura grave violação à privacidade.
II - DO DIREITO
A negativação indevida do nome do autor no SERASA configura prática abusiva e ilegal, nos termos do art. 43 do Código de Defesa do Consumidor.
A cobrança indevida realizada pela OI/SA, por meio de um chatbot, viola o direito do consumidor de obter informações claras e precisas acerca dos serviços contratados, bem como a possibilidade de negociar suas dívidas, violando os artigos 6º e 30 do Código de Defesa do Consumidor.
Por fim, a OI/SA agiu com negligência ao ter acesso aos dados pessoais do autor sem a devida autorização, violando a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018).
III - DO PEDIDO
Diante do exposto, requer o autor:
1. O recebimento desta inicial com a devida incorporação da sua integralidade aos autos;
2. A condenação da OI/SA ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), pela negativação indevida, pela cobrança sem dar oportunidade de negociar e pelo acesso indevido aos dados pessoais do autor;
3. A condenação da ré para excluir todos os dados do autor de seus bancos de dados;
4. A determinação para que a OI/SA proceda à imediata exclusão do nome do autor do cadastro de inadimplentes do SERASA;
5. A citação da OI/SA, na pessoa de seu representante legal, para que apresente defesa no prazo legal;
6. A produção de todas as provas em direito admitidas, em especial a documental e a testemunhal;
7. Que o Judiciário busque as informações necessárias para a citação da ré.
III - DO VALOR DA CAUSA
Dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00.
Rio Branco, Acre
17 de fevereiro de 2023”
Leonardo Fontes Vasconcelos. Assessor ministerial no Ministério Público do Estado do Acre, professor de Direito no Grupo Ser Educacional pela Unama Rio Branco, pós-graduado em processo civil, advogado licenciado, membro consultivo da Comissão de Ensino Jurídico da OAB Acre e Diretor da Capital Jurídico. Também foi professor do quadro permanente da ESA da OAB/AC até pedir desligamento.