No ano de 1808, a família real se instalou no Brasil, com ela a burocracia, considerada característica essencial do império português, permaneceu funcionando em sua plenitude mesmo diante da independência do país. Com isso, a forma de organização humana passou-se a se basear na racionalidade sendo inerente a adequação dos meios e fins visando a máxima eficiência. Certamente, as Faculdades de Direito foram instituídas nesse contexto de hierarquia e relações impessoais.
A Proclamação da República propiciou a autorização e o reconhecimento do ensino livre. Diante disso, em 1827, surgiram os primeiros Cursos Jurídicos em Olinda - Pernambuco, posteriormente Recife - PE e São Paulo - SP.
Dentro desse contexto, de forma anterior a essas conquistas, houve uma trajetória árdua marcada por grandes homens, como Fernando Mendes de Almeida que convocava com frequência colegas partidários para se reunir em seu escritório com a finalidade de traçar estratégias para criação de uma Faculdade de Direito Livre. Essas iniciativas tornaram-se possíveis as fundações da Faculdade de Direito do Recife, bem como da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro.
A fusão das referidas Faculdades proporcionou em 1920 a criação da fundação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em que pese, na época não existir distinção entre Faculdade pública ou privada, essas iniciativas eram privadas e autorizadas pelo governo.
Importante ressaltar que, no início do século XIX, os direitos das mulheres não estavam consolidados na sociedade. Não obstante, as mulheres possuírem a consciência das dificuldades que iriam se deparar ao exercer sua profissão, elas não se deixaram abater pelos preconceitos e críticas.
A presença das mulheres brasileiras no Direito tem origem em 1880. Deveras que, em 1888 existiam mulheres bachareladas em Direito no Brasil, como Delmira Secundina da Costa, Maria Fragoso, em 1889 Maria Coelho da Silva Sobrinho. Também, Maria Augusta Coelho Meira de Vasconcelos, todas graduadas pela Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco fundada em 1827 mas sem atuação profissional devido ao patriarcado e resistência dos organismos relacionados à classe.
Em seguida, em 1898 Maria Augusta Saraiva ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, conquistando sua formação em 1902. Entretanto, nenhuma delas exerceram efetivamente a profissão.
Em 1875 nasceu Myrthes Gomes em Macaé - Rio de Janeiro. Desde a adolescência demonstrou interesse pelas leis no curso médio da Instituição de Ensino Secundário Liceu de Humanidades de Campos, sediada em Campos dos Goytacazes - RJ. Naquela época, as mulheres eram doutrinadas a construir suas vidas tendo como base a dedicação exclusiva ao casamento e à família.
Apesar disso, decidiu externalizar para sua família o sonho de ingressar à Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. No entanto, ela partiu para o Distrito Federal e ingressou no Curso de Direito da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais e finalizou a graduação em 1898. Todavia, ela não obteve êxito ao exercer a profissão, em razão da resistência da sociedade e dos posicionamentos discriminatórios dos organismos que autorizavam o exercício da profissão existentes à época. Diante disso, somente em 1906 Dra. Myrthes conquistou a sua legitimação profissional ao integrar o quadro de sócios efetivos do Instituto dos Advogados do Brasil – IOAB sendo requisito fundamental para o exercício profissional da advocacia.
A propósito, os Estatutos à época permitiam que bachareladas em Direito se candidatassem como estagiárias junto ao IOAB. Logo, a sua primeira tentativa para ingressar no IOAB foi como estagiária. Em 1899, a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência por meio de publicação na Revista do IOAB, manifestou entendimento que não havia que suscitar impedimento para as mulheres exercerem a advocacia em apoio à Dra. Myrthes.
Assim, em 1899, Dra. Myrthes foi a primeira advogada do Brasil que atuou no Tribunal do Júri. A sua representatividade feminina no Tribunal repercutiu à época já que de fato houve o seu reconhecimento como a primeira mulher advogada atuante no Brasil. Esse fato considerado um marco histórico no Brasil, incentivou discussões sobre a atuação profissional da mulher, liberdade feminina e emancipação jurídica da mulher. Ainda, contribuiu com a produção de textos jurídicos para o Jornal do Commercio, periódicos para Revista do Conselho Nacional do Trabalho, Época e a Folha do Dia.
Nesse contexto, independentemente de as mulheres terem acesso à graduação superior, em específico no Curso de Direito, em tese elas teriam todos os seus direitos resguardados. No entanto, ainda nos deparamos diante de situações que violam os direitos das mulheres, como a que ocorreu no dia 17 de agosto de 2021, em Londres. Por certo, muitas advogadas carregam dentro de si o espírito de resistência e mudança que impregnava a essência da emblemática Myrthes Gomes. Cite-se o exemplo mais recente ocorrido em Londres, em que aproximadamente 300 advogadas britânicas assinaram uma petição com a finalidade de exigir que um dos Clubes mais tradicionais de Londres, o Garrick Club, considerado um símbolo da cidade de Londres por reunir intelectuais das mais variadas áreas e maioritariamente empresários e magnatas que debatem ideias e trocam experiências que muitas vezes causam impacto na sociedade londrina, seja aberto às mulheres.
Mesmo a figura da mulher tendo sido essencial na Revolução Industrial, na qual serviu de mão de obra de trabalho para o progresso da Inglaterra, de forma injusta, há décadas é proibida a presença ativa de mulheres no referido Clube, sendo aceitas apenas na condição de convidadas. Ou seja, elas não podem entrar livremente com um grupo de mulheres que partilham dos mesmos posicionamentos políticos e sociais. Assim sendo, impedidas de usufruir dos serviços prestados pelo Clube. Percebe-se que, Continentes, Nações, Países, Estados, Cidades, sendo desenvolvidos ou não, ainda constroem muros em que diferenciam os seres humanos em razão da identidade de gênero.
Esclareço que, Londres, historicamente sempre foi sinônimo de modernidade. No entanto, o patriarcado ainda está presente nessa sociedade, e mesmo no século XXI as advogadas que ali residem ainda necessitam judicializar questões que negam direitos às mulheres. No caso concreto, a liberdade de integrarem a assembleia como membras do Clube Garrick ou estabelecimentos nos quais a atuação ativa de mulheres é proibida, ou seja, na atualidade esses Estatutos podem ser considerados discriminatórios e ilegais. Em que pese, elas terem o direito de adentrar como convidadas no Clube Garrick, elas não possuem tratamento igualitário. Tendo em vista que, diferentemente do que ocorre com os ‘cavalheiros’ com identidade masculina, as mulheres não possuem voz ativa sendo reprimidas no sentido de expressar suas convicções de igual para igual.
Por fim, as mulheres seguem diariamente superando dificuldades impostas de forma arbitrária, discriminatória declarada ou velada em que o sistema social do patriarcado ainda é uma realidade para todas elas. Que o legado de Myrthes Gomes continue incentivando mulheres a conquistarem os seus sonhos no mundo.
Comentarios